quinta-feira, 26 de março de 2009

UMA REVERÊNCIA À VIDA E À MORTE ( PARTE1)




Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face.
E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei
no lugar dos meus;
E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus;
Então ver-te-ei com os teus olhos e tu
Ver-me-ás com os meus

Moreno



Quem quer que tenha o mínimo de brio, assume a responsabilidade de interrogar-se e responder: quem sou eu? Sabemos o nome, a idade, o que fazemos na vida, o que gostamos…mas não sabemos quem somos! No momento final, cada acto, cada fôlego da nossa vida, torna-se extremamente claro. Só a morte nos obriga a irmos realmente ao fim de nós mesmos… virar-lhe as costas é simples, assegura-nos, talvez, uma ilusão agradável!? Mas é um insulto à vida…porque só nesse momento compreendemos com alguma clareza quem fomos, e com sorte, encontramos um sentido…houvesse ainda tempo para perguntar: quem era ele e quem era ela? E qual era o sentido?


A partir do momento da nossa concepção até à morte, o nosso percurso de vida desenrola-se no seu modo único.


Nas antigas mitologias germânicas, eram as Mumurantes (deusas do destino), que viviam ao pé da árvore do mundo, que teciam o fio do destino de todos os seres. Os seus nomes: Urôr (a que se tornou), Verdandi (a que está a tornar-se) e Skuld (a que se tornará), estavam relacionadas com o passado, o presente e o futuro. O destino significava que o percurso de vida tinha que ser entendido, aceite e vivido em grande parte como predestinado (Wehowsky, 2005).


Desta forma, a morte está escrita no nosso destino, e não há nenhum poder humano que a impeça.


A maioria de nós nasceu e vai morrer num hospital, quão frágeis somos! Porém, nascer alvitra alegria, mas da morte não se fala. Nascemos com medo das alturas, dos movimentos súbitos, dos sons altos, os restantes, tal como o medo da morte, são adquiridos. A visão sombria e terrífica da morte tem vindo a ser apreendida culturalmente. Foi no final do século XVII que irrompeu uma grande intolerância face a familiaridade entre mortos e vivos, o que não se passava anteriormente. Durante a Idade Média, todos reconheciam a sua mortalidade e ninguém morria sem saber que ia morrer. A pessoa preparava-se e aguardava a morte serenamente na cama ou no chão (no caso de um cavaleiro ferido), mas não sozinha, como hoje em dia (Oliveira, 2008).

O sistema moderno de saúde luta agressivamente contra a doença e a morte. Prolongamos a vida (ou a morte) a todo o custo. Tornamo-nos, claramente, numa sociedade que nega a morte.


Porém, a morte não foi conquistada e todos nós vamos morrer. A maioria de nós morrerá com uma doença crónica com fase terminal curta, com deterioração progressiva, com crises periódicas e com uma dependência média de quatro anos.


Como vemos, a morte saiu do domicílio e foi para o hospital, embora potencialmente poderíamos ser cuidados em casa. Mas, com esta cultura de negação da morte, com a ilusão do controlo sobre a doença e com os novos sistemas familiares…morremos sozinhos, com um número de cama num hospital… e esta solidão, já não é a mesma da Idade Média, em que solidão significava sentir-se estar completo e, em termos religiosos, solitude traduzia a experiência de ser uno com Deus.

Todavia, um cemitério, um quarto de hospital, podem transformar-se em locais inesperadamente interessantes quando se vêem com os olhos de ver e aprender. Porque é que a doença, o doente, metem medo às pessoas? Porque o associam à morte, e esta é no mínimo incómoda, uma chatice!? (Oliveira, 2008).


A morte faz parte da vida, tal como o nascer, a infância, a juventude ou a velhice. No contacto diário com a morte, conhecemo-nos melhor como seres humanos, percebemos que cada momento insignificante tem a sua razão de ser, se o soubermos ler. Contudo, o difícil é aprender a ler, porque todo o resto está escrito…


Cada ser humano tem a sua história única, irrepetível, grandiosa ou modesta, longa como a dos velhos sábios ou curta, ilusória e traída. Quando a morte nos toca, devíamos procurar perceber se mais uma vez, aprendemos alguma coisa sobre a natureza humana (Serrão, 2003).


Nos corredores do hospital há relógios. Um deles marca 13 horas… mas não! Já passou bastante dessa hora. Aquele relógio continua agradavelmente parado. Os seres andam de um lado para o outro, alguns parecem ansiosos, assustados, outros só andam depressa, como se tivessem um relógio louco dentro deles. Outros, andam calmamente, como que num outro universo onde o tempo não faz sentido, onde não há pressa de chegar…parecem esperar que algo ou alguém lhes devolva a luz ao olhar. Outros ainda, estão parados, frágeis, enrugados…resignados ao expirar do tempo, prestes a ser ceifados pelo frio eterno. Mas, não há horror na morte, o corpo só já é um instrumento inútil… são vidas humanas em mãos humanas…Era um momento de solidão geral.



Estela Landeiro
Psicóloga Clínica
Mestre em Psicoterapia e Psicologia da Saúde
Serviço de Medicina Paliativa – Centro Hospitalar Cova da Beira E.P.E

5 comentários:

andrade da silva disse...

Estela

É com muito orgulho e alegria que se dá aconhecer a tua perspectiva sobre a vida e a morte, não só por seres a grande mulher a amiga que és, mas também por seres uma psicóloga que por vocação e dedicação acompanha muitos dos nossos concidadãos na hora da partida.
Um muito obrigado e um grande abraço.
asilva

Anónimo disse...

Há "coisas" que as palavras não sabem dizer...talvez, porque estas "coisas" são anteriores à palavra.
Por isso, fica um simples: obrigado! E votos para que cada vida, seja pautada pela dignidade e coragem de viver...até ao fim...

Com carinho,
Estela Landeiro

augustoM disse...

Plenamente de acordo! Na tertúlia há já algum tempo tentei falar da vida evocando a importância da morte, não fui compreendido, paciência. Dissociar a morte da vida é tirar o sentido à vida, sei que aceitar a morte é uma coisa tão difícil como desfrutar plenamente da vida.
Um abraço. Augusto

andrade da silva disse...

Augusto
Tu és compreendido porque és amado, e amar é a melhor forma de compreender.
abraço
asilva

Marília Gonçalves disse...

Grito

Dói-me a que sou sem ter sido
a que vejo mas não viu
essa que treme de frio
no fogo que a consumiu.
Dói-me este olhar que me cerca
por dentro do meu olhar
dói-me a asa de poeta
cansada só de pairar.
Dói-me esta fome concreta
esta voz a querer gritar
minha vontade insurrecta
de não a poder calar.

Marília Gonçalves