(FANTASMAS
DA MEMÓRIA)
.
DIÁLOGOS DE CAFÉ
O Ti’Ernesto
Finais
de Julho. Também esta tarde vinha quente. E também o movimento nas ruas
era quase inexistente. Não havia clientes quando o homem entrou no Café. O empregado
reconheceu-o e veio ao seu encontro com um sorriso de boas-vindas. Por
casualidade ou preferência, o homem escolheu a mesma mesa que ocupara havia
dias. O empregado desabafou:
--
Como vê, o marasmo continua.
O
homem concordou com um movimento afirmativo de cabeça e tentou desvalorizar a
situação:
--
É o verão, deve haver gente de férias e a emigração tem sangrado muito estas
terras pequenas. Olhe, por favor, traga-me um café e um copo de água.
O
empregado foi atender o pedido e passados momentos regressou com a chávena de
café e o copo de água. Enquanto o cliente açucarava a bebida, quis saber:
--
O senhor tem muita gente conhecida aqui?
O
homem esboçou um sorriso e satisfez a curiosidade do empregado do Café:
--
Os mais velhos, sim; eu ausentei-me há muito e os mais novos já me escapam, mas
alguns ainda consigo saber quem são pela pinta…
O
empregado lançou um ah exclamativo e, satisfeito, perguntou:
--
Nesse caso, o senhor conhece o Ti’Ernesto! Ele deve ser da sua idade ou
um pouco mais velho…
O
homem meditou uns segundos e depois confirmou:
--
Sim, sim, conheço, ele tem uns anitos a mais do que eu, mas lembro-me muito bem
dele. Como está ele, agora? Continua rijo?
O
empregado do Café estava visivelmente satisfeito por o cliente se recordar do
Ti’Ernesto e abriu o jogo:
--
Sabe?, eu ouvi uma história dele em período eleitoral, no tempo da outra
senhora…Como as coisas eram naquele tempo! Até me custa a acreditar em muitas
coisas que se contam…
O
homem tentou clarificar as coisas:
--
O meu caro devia ser muito novo quando ocorreu a Revolução dos Cravos, isto no
caso de já andar cá neste mundo…
O
empregado, assumindo um ar grave:
--
Já era deste mundo, sim senhor, até já andava na Escola; eu nasci em 1966. E
lembro-me bem do alvoroço que foi aqui no final do dia 25 de Abril… Toda a
miudagem estava contente por ver os adultos contentes. Foi um dia muito bonito
para todos.
Nostalgicamente,
o homem confirmou:
--
Sim, foi um dia muito bonito!
E
assim ficaram largos momentos pensando naquele dia distante e, porventura,
pensando também nos sonhos que amanheciam naquele dia… Depois, o empregado
insistiu em saber o que sucedera naquele antigo período eleitoral:
--
O senhor desculpe, mas eu gostaria de saber se aquela história do Ti’Ernesto é
verdadeira ou não. É que me contaram assim: era um domingo, dia de eleições;
ele estava na herdade trabalhando; ainda da parte da manhã, o patrão
chegou e disse-lhe: olha, vais à vila entregar esta carta ao senhor Fulano
de tal, que está a esta hora na Escola tal. Ti’Ernesto recebeu o
sobrescrito e lá foi entregá-lo. O senhor Fulano
de tal recebeu o sobrescrito com um
obrigado, podes ir… E
só dias depois alguém lhe disse: essa foi boa, oh Ernesto! Foste votar e nem deste por nada! Foste bem enrolado,
grande palerma!
O
homem baixou os olhos e fixou-os na chávena vazia. O empregado percebeu naquele
gesto a confirmação da veracidade da história. E num desabafo:
--
Até custa a acreditar!...
O
homem meneando a cabeça com tristeza:
--
É verdade, aquele tempo foi mau de mais para se acreditar. E depois, quando
tudo parecia poder finalmente entrar nos eixos, veio o ajuste de contas, o
silêncio, aqui cúmplice, ali resignado, e este marasmo que parece querer
impor-nos um marcar passo perante a História…
O
empregado repetiu o ah exclamativo, recebeu o dinheiro que pagava a despesa e
olhou o homem que saía sem uma palavra de despedida.
José-Augusto
de Carvalho
31
de Julho de 2018.
Alentejo
* Portugal