TEXTO DE: José António Bragança
Por detrás desse pensamento estava a crença de que o mundo era
organizado divinamente. "Todos os
seres do mundo são para nós como um livro, um espelho."Mas, com o
tempo,essa fé seria abalada por uma extraordinária revolução cultural. Uma
revolução na forma de pensarmos, de analisarmos o mundo físico. E, em nossa
experiência, de outros continentes e culturas. A soma do conhecimento europeu e
a fé cristã na qual ele se baseava, a forma de compreendermos o mundo, de como
ele foi feito e passou a existir, estavam prestes a ser transformados.
O mundo entre os séculos IX e XV. Supostamente um período de
superstição e ignorância. Onde as ideias eram sufocadas pela influência
opressiva da religião. O cenário intelectual da Idade Média é pouco familiar,
até estranho. De debates acalorados sobre pontos obscuros da teologia. Mas por
trás de toda essa estranheza está um mundo de pesquisa intensa. Havia estudo,
ciência, exploração intelectual e lógica sofisticada.
O mundo vivenciado pelo homem medieval era bem diferente do
nosso. Fatos classificados como "sobrenaturais"aparecem
com frequência nos relatos medievais.
Os registros medievais são repletos de visões de seres
estranhos.
Segundo o filósofo Alain de Lille, "todos os seres do mundo são como um livro, um quadro,um espelho,
para nós."Mas esta visão da Terra como um livro sagrado começava a
desvanecer através das mudanças que ocorriam no mundo medieval. O crescimento
das cidades por toda a Europa. O surgimento de guerras. Os novos horizontes
abertos pelo comércio. A crescente complexidade do governo e das leis. A
burocracia exigida para gerir um estado medieval ficava mais sofisticada.
De onde viriam os juristas e administradores? Uma nova
classe de homem, educada de forma diferente, era necessária. O conhecimento do
estudo bíblico não era mais suficiente. Tutores começaram a se reunir em Oxford
em meados do século XII. Ofereciam o ensino do Direito e outras disciplinas
seculares em troca de dinheiro.
Foi uma pequena revolução. Podia-se seguir uma carreira de
conhecimento sem ser monge ou padre. Jovens começaram a estudar, não para
aproximarem-se de Deus, mas para melhorarem as suas chances na vida.
Homens como Pedro Abelardo, da Universidade de Paris, que se
via como um guerreiro da verdade. "Prefiro
as armas da lógica aos outros ensinamentos filosóficos e, de posse delas,
escolho os choques das discussões aos troféus das guerras."
Sua abordagem crítica e analítica exemplifica o novo estilo
intelectual surgido nos séculos XII e XIII.
Como ele escreveu: "É
duvidando que se chega à investigação, e investigando que se chega à
verdade."
Esse anseio por um tipo diferente de conhecimento iria
ameaçar o monopólio monástico do ensino. A conturbação no resto do mundo acelerou
essa mudança intelectual.
A Europa cristã estava na ofensiva. Seus cavaleiros
conquistando terras ao redor do Mediterrâneo.
Nos séculos XI e XII, os cristãos espanhóis avançaram para o
sul, tomando território muçulmano.
Em 1085, conquistaram a grande cidade de Toledo. Esta cidade
fortificada fora o centro cultural das artes e ciências islâmicas. Foi um
grande prémio para os exércitos cristãos.
Dentro de suas muralhas havia maravilhosas bibliotecas. Elas
continham antigos textos gregos traduzidos para o árabe, incluindo obras
científicas do grande filósofo Aristóteles, que até então era desconhecido no
Ocidente.
As notícias de tais descobertas se espalharam pela Europa,
chegando aos ouvidos dos clérigos britânicos. Por volta de 1170, um padre de
Norfolk, Daniel de Morley, ouviu histórias sobre os manuscritos descobertos nas
bibliotecas da Espanha. Frustrado pelo mundo intelectual limitado que via à sua
volta, ele se preparou para a longa viagem ao sul da Europa. Daniel estava
impaciente com o conhecimento tradicional que parecia dedicado a anotações
detalhistas dos textos de direito romano.
O que o animava era o estudo avançado da matemática,
geometria e astronomia.
"Os temas
científicos eram festejados em Toledo. Dirigi-me para lá para aprender com os mais
sábios filósofos do mundo." Em Toledo, ele encontrou o que procurava.
Os estudiosos cristãos nunca tiveram acesso a tanta
informação nova. Homens como Daniel de Morley ajudaram a iniciar uma revolução
intelectual. Na bagagem que Daniel trouxe da Espanha havia obras científicas de
autores não cristãos como o grande cientista muçulmano, Abu Ma'shar,e por
autores pré-cristãos como Aristóteles. Como o próprio Daniel disse,"ele
retornava à Inglaterra com uma valiosa carga de livros."O trajecto de
Toledo a Norfolk foi apenas a última parte de uma viagem
intelectual extraordinária.
Ideias que viajaram ao longo dos séculos e através dos
continentes.A Metafísica aristotélica.A Física aristotélica.O livro de
Aristóteles sobre os animais.
Estes textos fizeram uma jornada incrível antes de
ficarem disponíveis para os estudiosos da Europa medieval. Escritos originalmente no
século IV a.C., na Grécia Antiga,eles se disseminaram pelo mundo helénico.
Então, séculos depois com a ascensão do Islão a expansão do império árabe,eles se tornaram conhecidos dos estudiosos muçulmanos que os traduziram para o árabe. Depois, espalharam-se pelo mundo islâmico, incluindo a
Espanha.
E ali, no século XII, em uma sociedade multicultural e
idiomática, estudiosos vindos da Inglaterra, Paris, Itália,em busca de traduzi-los
para o latim, a língua universal da educação na Europa Ocidental.
E então, ao menos, estes textos, após 1500
anos, disseminaram-se aos centros intelectuais do Ocidente. Eles causariam uma revolução. Até então, as bases da filosofia medieval eram alicerçadas na Bíblia e
em milhares de anos de ensinamento cristão.Deus criou o mundo em 7 dias e
controlava todas as coisas nele.
Os filósofos gregos partiram-de premissas bem diferentes.As
ideias dos pensadores clássicos gregos, como Aristóteles, escritas 4 séculos antes
de Cristo, não levaram em conta a noção do Deus cristão.
Eles discutiam a psicologia humana sem referência ao Cristianismo e, claro, inexistia a revelação bíblica,ou criação em 7 dias.Ao
invés disso, sustentavam que o universo sempre existiu e existiria.
As obras de Aristóteles ,junto com outros pensadores gregos e
árabes, apresentavam algo totalmente novo no Ocidente cristão.
Uma análise racional sistemática do universo baseada em princípios não cristãos.Uma visão de mundo baseada apenas na natureza e na razão.
A reacção mais tarde das autoridades da Igreja foi previsível."Os livros de Aristóteles sobre
filosofia natural e os comentários sobre eles,não devem ser lidos em Paris, em
público ou em particular, sob pena de excomunhão."
Era ainda pior. Se há leis naturais que regem o universo, isso
implica que Deus é seu prisioneiro.Para alguns, esse pensamento era pura
heresia.A crença religiosa parecia estar em rota de colisão com as teorias racionais-sobre a natureza do mundo.
Seria preciso um notável frade dominicano para reconciliar
o aparentemente inconciliável.
Tomás de Aquino veio de uma família aristocrática da
Itália.Ele era um rapaz estudioso e sua família parecia ter ambições específicas
para ele.
Pensaram que seria muito bom se ele se tornasse abade do próximo e rico mosteiro de Monte Cassino. Mas Tomás tinha outros planos.
Ele foi atraído pela recém-fundada Ordem Dominicana, que
prometia pobreza, pregação e ensino.Sua família ficou indignada com essa atitude
rebelde.Tentaram de tudo para demovê-lo de tal decisão.Eles até o prenderam e
mandaram jovens sedutoras para visitá-lo.Mas ele perseverou e partiu como dominicano para Paris, o centro da vida intelectual da Europa Ocidental.
Ali, Aquino se deparou com as ideias de Aristóteles. Ele notou
que, ou a Igreja acomodava Aristóteles, ou seria oprimida por ele .A razão humana, sustentava Aquino, provinha de Deus. A revelação cristã também derivava de
Deus.Se a razão humana fosse usada correctamente, não poderia contradizer o que
Deus revelou na Bíblia.
O universo sempre existiu ,ou ele teve um princípio?
Aquino afirmou que isso não podia ser provado ou contestado somente com a razão.Aristóteles tinha chegado o mais longe possível
com ela.Somente a revelação divina poderia nos fornecer a verdade.
Em sua imensa obra, a Suma Teológica, Aquino abordou todos os argumentos concebíveis entre as duas formas de pensar. Aquino realizou um estudo hercúleo
.
A experiência foi tão intensa,que exigiu muito da mente e do
corpo."Comparada à grande glória de
Deus, minha obra é nada."Ele morreu, deixando a Suma inacabada.Mas suas ideias sobreviveram.
O uso da razão, baseado em Aristóteles, para fortalecer o pensamento cristão ,ficou conhecido como Escolástica.Nenhuma pergunta era difícil ou obscura.Esse período ficou tão célebre e notório, devido à intensa investigação teológica.
Dizem que os pensadores medievais lidaram com a intrigante
questão:"Quantos anjos podem
dançar na cabeça de um alfinete?"
Este não é um exemplo do verdadeiro pensamento medieval, mas
um pastiche vitoriano dele. Mas há um pouco de verdade nisso.Tomás de Aquino realmente especulou se anjos, que não possuíam corpo,na acepção comum, poderiam
ocupar mais de um lugar ao mesmo tempo, ou se muitos deles poderiam ocupar o mesmo
lugar.
O equivalente medieval ao tipo de indagação que hoje
fazemos na física quântica.