quinta-feira, 16 de julho de 2009

EU, CIDADÃO-MILITAR, ME APRESENTO! (XI) - TO ANGOLA 71/72. NEGAGE: O REGRESSO À ARMA-MÃE, A ARTILHARIA. (1)


MESMO EM TEMPOS QUE É PROIBIDO PENSAR, PENSA-SE ...


Em 2 de Abril 72, em Mucaba, uma vez mais, num almoço de confraternização digo um até sempre a um grupo de 200 homens que comandei com muita amizade. Levo na memória e no coração duas mortes: um alferes pacifista que se tornou odiado e um cabo, óptimo rapaz que tanto temia a prisão disciplinar, e a prisão eterna ceifou-o, tão cedo desta vida. Choro-o com muita dor, e recordo com igual dor o sofrimento dos seus pais. Pobres pais!

Nesta companhia pouco depois ainda morrerá mais um soldado, o seu comandante de pelotão, segundo o relato crítico que me foi feito, entrou num acampamento abandonado, e saiu pelo mesmo trilho, na saída uma mina assassina matou o soldado. Já estaria lá, ou foi entretanto posta. Era um erro grave, sair por onde se tinha entrado, e, neste caso, pode ter sido trágico ao ceifar uma vida. Se fosse o comandante deste Alferes, este, teria de me dar muitas e precisas informações. Não sabia desculpar estes incumprimentos tácticos.

A BTR ( bateria de artilharia) 3421 era constituída por pessoal todo meu conhecido. Estava situada numa cidade aprazível, o Negage, o que me leva a considerar esta noticia como bastante agradável. Era comandada por um capitão de artilharia que já conhecia, e aqui também irá parar o meu camarada de curso alferes Pereira que viria a demonstrar um estoicismo a toda a prova, sacrificando-se e sujeitando-se a um incómodo incomensurável ao colocar fita auto-colante na sua boca, para respirar pelo nariz, e não perturbar o sono de outro guerreiro, seu camarada. Só um grande Homem e camarada faria isto. Não sei se nas mesmas circunstâncias faria o mesmo, até porque não me lembraria de tal coisa. ( Ainda não te agradeci este grande sacrifício, mas nunca o esqueci).

A 14 de Abril faço nesta unidade o meu primeiro serviço de Oficial de dia e, aqui, por estes tempos é que se viam o que eram os portugueses que descendendo de Viriato não tinham evoluído assim tanto.

Muitos eram mesmo muito brutos e possantes, havia por aqui especialmente dois, com nomes muito a propósito: um Valente e outro Vinagre, que resolviam os seu diferendos familiares a tiro de caçadeira, como os próprios contavam e faziam-se acreditar, pessoalmente, acreditava piamente. Um deles era mesmo muito primitivo, com toda aquela cobertura de pelos ruivos mais parecia um boi, mas eram chefes informais e temidos pelos outros por causa da sua brutal força. Alguns destes rapazes comiam a módica quantia de para cima de uma dezena de postas de peixe, ou seja, o que outros nem à lei da bala comiam.

António Brito no seu livro “ Olhos de Caçador” que tive honra e o prazer de apresentar dá uma fotografia dos soldados de então, através do imortal soldado Fraga, mais geralmente chamado Silva, corajoso, esperto, meio contrabandista, meio aldrabão, mas sempre um grande trabalhador –Um VIRIATO- anónimos, mas grandes.

Um dia, lá mais para diante, vou ter encontros decididos pela história, com vinagres e companhia, e dado o meu estilo de comando sem rede e de proximidade, ou vou perder ou vou ganhar, jogando com as cartas deles, a força, as minhas seriam o Regulamento de Disciplina, mas na guerra, enfim…,como adiante se verá.

A 26 de Abril a BTR é visitada pelo meu antigo capitão que tem comigo uma acesa discussão, por cerca de 2 horas, acerca dos seguintes assuntos: castigo a um cabo de Mucaba, alterações ao processo de comando enquanto comandante interino, mas estas já estavam feitas e revia-me com muito orgulho nelas, e como era óbvio, o comportamento do seu dilecto alferes foi objecto de controvérsia.

Este capitão estava na sua 3º comissão, considerava-o muito vaidoso, mas também diziam que o era, assim duas vaidades em presença tornava tudo isto um pouco mais difícil. Reconheço que deveria ter sido um alferes, talvez um tenente e um capitão mais humilde, mas haverá algum jovem humilde e que seja Capitão? Capitão que o fosse nunca os vi lá muito humildes, e poderá um capitão sê-lo, sendo que é o verdadeiro comandante de tropa?

O capitão comanda os militares nas linhas de combate, morre ou alcança a vitória com os seus soldados, o mesmo se passa com os alferes e com os sargentos comandantes de secção e com estes últimos sempre, têm de estar todos os dias lá na frente, o capitão, de quando em vez , pode ficar um pouco mais atrás, os alferes e os sargentos nunca.


Em 27 de Abril pelas 10h fiz uma corrida de 5Km. O Negage era uma zona de paz, de completa liberdade de movimentos, por vezes havia uns sobressaltos inconsequentes, gente armada com granadas a passear nas ruas da cidade, mas era gente amiga, de cor negra, a quem, através dos administradores de posto, era dada licença de porte de armas e, então, alguns passeavam-se pela cidade com as ditas, e faziam-no com a mesma alegria e simpatia com que usavam os tais óculos de sol espampanantes, coisas iguais para a sua ingenuidade. Só que logo eram dados como terroristas e metade da cidade os queria matar, e lá a tropa tinha de resolver o assunto no terreno e no da justiça militar, feudo árido e minado e nada dado a jovens alferes.

Depois desta corrida e depois de ter verificado a minha má forma física, para ganhar mais aptidões juridica-disciplinares fui nomeado para investigar um dos tais casos de negros armados. Empenhei-me, desloquei-me à repartição de justiça do Quartel General em Carmona, recebi todo o apoio do chefe da repartição, porque era preciso responsabilizar os administradores ( pensei se estariam à espera de um alferes para isto, mas se fosse eu, esse alferes, devia ser por ser madeirense que somos atrevidos, dizem… ).

O administrador do Negage já era de elevada patente, intendente, ao que creio. De facto indaguei todas as responsabilidades do administrador e considerei-o como o responsável moral por aquela peça que podia ter um desfecho trágico. As pessoas sentiram-se ameaçadas e ao reagirem podiam agredir o negro que acossado podia atirar o “recuerdo” às pernas de alguém. Muito me esforcei e o administrador sentiu-se muito, muitíssimo, atrapalhado. Se mais nada aconteceu o senhor aprendeu que lhe podiam ser feitas perguntas muito incómodas para as quais não tinha resposta aceitável e, assim, viu-se preso na sua própria ratoeira.


Nestes tempos dizia-se que ninguém pensava, mas seria memo assim? Por mim confesso e dou prova que não, porque em 27 e 28 de Abril 72, naquelas terras de África transcrevi para estes caderninhos de farrapos de memórias pensamentos de Einstein sobre a religiosidade cósmica – apreender a totalidade da existência como uma unidade cheia de sentido - de Caraudy - A profundidade da fé de um crente depende da força do ateu que traz consigo, e a profundidade humana do ateu depende da força do crente que traz consigo, ou a fé é um sentimento, a religião uma instituição - e finalmente toda a beleza e força deste pensamento de Morávia: Para o humanista a verdadeira obra da sua vida é ele próprio, como elo de uma cadeia infinda que o liga em comunhão humana a um passado, presente e futuro ( talvez aqui tenha ido buscar o conceito de arco-voltaico que imprimi na minha acção de comando). Ou ainda ser homem não é um meio de chegar ao Céu ou à mesa posta, é um fim em si mesmo…. E, agora , calo-me.

andrade da silva 16 Julho 09




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