sexta-feira, 27 de abril de 2018

MEMÓRIAS DE UM MILITAR DE ABRIL(1): O 25 ABRIL 74




 A vida continuou e os contactos entre gente que se considerava antifascista e pelo fim da guerra colonial prosseguiu, ainda que com as cautelas que a situação impunha, pois o regime fascista existia, a repressão mantinha-se e a Pide continuava a existir.
 Até que chegou aquela noite mágica de 24 de Abril de 1974.

                              “ESTA É A MADRUGADA QUE EU ESPERAVA
                                O DIA INICIAL INTEIRO E LIMPO
                                ONDE EMERGIMOS DA NOITE E DO SILÊNCIO
                                E LIVRES HABITAMOS A SUBSTÂNCIA DO TEMPO”
Sophia de Mello Breyner Andresen

 Desconhecendo por completo o que estava planeado, foram todos os Furriéis chamados para uma reunião urgente a realizar na messe de Sargentos e onde o Tenente Andrade da Silva expôs a situação.
 - “Está em curso uma acção militar com vista a derrubar o regime, pôr fim à guerra colonial e instaurar a democracia”, pelo que se impunha saber quem aderia à iniciativa.
Depois de alguns esclarecimentos adicionais e de sabermos que os comandantes da E.P.A. já tinham sido detidos, todos os Furriéis-Milicianos deram de imediato o seu apoio a tal desiderato. Dado mais este passo pela E.P.A. para dar cumprimento ao Plano de Operações definido e enquanto de procedia à formação das equipas que iriam partir para o Cristo-Rei, pude conversar com outros militares sobre a iniciativa em curso e a expectativa da deposição do regime, do fim da guerra colonial e da instauração da democracia. O desejo de participar activamente nas operações militares ficou, inicialmente, posto em causa, pois o Tenente Andrade da Silva já tinha formado o seu pelotão, tendo eu e o Furriel Sequeira ido manifestar-lhe o desejo de partilharmos com ele a honra da nossa participação na iniciativa, o que foi atendido. 
Pelas 03H00 da manhã de 25 de Abril de 1974 partiu a coluna militar com destino ao Cristo-Rei, no Pragal, Almada, onde chegámos pelas 07H00. O trajecto desde Vendas Novas ia sendo monitorizado pelo Tenente Nave e Aspirante Nuno, em viatura civil, de modo a tentar evitar qualquer obstáculo que a G.N.R. pudesse vir a criar, obstáculo que se verificou de forma inesperada quando a coluna militar ficou “partida” por ter encerrado uma passagem de nível, mas que, após a abertura da mesma, rapidamente foi retomada.
No acesso ao Pragal e Cristo-Rei os militares da E.P.A. tiveram logo os primeiros sinais de apoio do povo quando uma funcionária de padaria nos veio entregar, com um enorme sorriso de satisfação (talvez por já ter ouvido os comunicados do M.F.A. na rádio), um grande saco de plástico com mais de cem carcaças. Foi este o primeiro sinal de que o povo de Almada estava com os militares, estava com o 25 de Abril.


Instalada e em posição a bateria de obuses 8,8, com os obuses apontados para os objectivos previamente definidos na Ordem de Operações, coube à companhia de artilharia o cumprimento  das acções determinadas pelo Posto de Comando. A primeira acção consistiu em ir ao Forte da Trafaria libertar os militares detidos na sequência do 16 de Março. Apesar de ter havido algumas dificuldades criadas pelo comandante do Forte para a libertação dos detidos e tendo este verificado a colocação do obus 8,8 em tiro directo dirigido para os portões do forte, o objectivo foi alcançado, os militares detidos foram libertados e, depois de breve passagem pelo Cristo-Rei,foram apresentar-se no Posto de Comando do Movimento.Também na Trafaria e por iniciativa exclusiva dos oficiais da E.P.A., todos os militares do Posto da G.N.R. local foram detidos e levados para o Cristo-Rei, por forma a desmobilizar qualquer eventual iniciativa que pudessem tomar contra o 25 de Abril, sendo mais tarde mandados regressar ao seu Posto de trabalho.
Durante a nossa estadia no Cristo-Rei, retenho o episódio passado com os fuzileiros, (que na altura ainda mostravam grande ambiguidade em relação aos objectivos do Movimento), e que pretendiam atravessar a Ponte sobre o Tejo de modo a atingirem objectivos (para os militares da E.P.A.) pouco claros. Para o poderem fazer, teriam que efectuar o sinal combinado de agitação das boinas sem o qual nunca poderiam atravessar a ponte e gerar-se-ia um conflito bélico entre militares. Na eventualidade deste conflito ocorrer, os portageiros da Ponte seriam confrontados com uma situação delicada pois ficariam no meio de fogo cruzado, sendo responsável por esta situação o Capitão Mira Monteiro, comandante da companhia de artilharia, que impediu que chegasse a informação aos portageiros para abandonarem os seus postos de trabalho. 
Ultrapassada esta dificuldade, pela correcta actuação dos fuzileiros, houve novo episódio marcante na memória e que foi o relacionado com a fragata Gago Coutinho. Estacionada em frente ao Terreiro do Paço, a fragata estaria pronta para afrontar as forças do Capitão Salgueiro Maia. Se o fizesse, os três obuses 8,8 apontados para a mesma por ordem do Posto de Comando, tê-la-iam afundado. Felizmente e por acção do imediato, comandante Caldeira Santos, (conheci-o 40 anos mais tarde) e dos restantes militares do navio, tal acção foi abortada.
Na sequência das operações militares que o Movimento desenvolvia e à medida que algumas dificuldades surgiam, o Posto de Comando determinou-nos a tarefa da deslocação da companhia de artilharia até ao quartel da Polícia Militar, já que, até aquela altura, a atitude desta unidade não era totalmente clara em relação aos objectivos pretendidos. A companhia de artilharia sob o comando do Capitão Mira Monteiro, ficou estacionada no largo próximo, tendo à sua frente a Polícia Militar e no lado oposto o Regimento de Cavalaria 7, uma unidade leal ao regime fascista. Felizmente que não houve qualquer conflito entre militares, já que a decisão de estacionar entre duas unidades militares hostis não foi a decisão acertada do ponto de vista militar. Ultrapassada esta dificuldade, os nossos oficiais procederam a demoradas conversações com os militares da Policia Militar, tendo os restantes militares da E.P.A. esperado ao frio e á chuva pelo seu resultado e que, sendo positivo, terminou com os graduados de ambos os lados em aberto convívio.
Durante a permanência da E.P.A. no Cristo-Rei, os militares puderam sentir o carinho e apoio das gentes do concelho de Almada (bem como dos concelhos próximos), quando puseram de parte as rações de combate de que eram portadores e foram alimentados com comida quente confeccionada durante os três dias de estadia naquelas paragens.
Terminadas as operações militares e antes da partida para o regresso a Vendas Novas, toda a gente queria ter uma recordação daquele período inesquecível e pediam aos militares uma bala. Após autorização dos nossos comandantes, a cada bala era retirada a pólvora e desactivado o detonador, após o que era entregue a quem tinha solicitado tal lembrança, notando-se a presença de muitos jovens.
Dada ordem de regresso à unidade, todo o trajecto foi percorrido entre alas de gente que ladeava as estradas. A despedida do Pragal foi emocionante, com milhares de pessoas a vitoriarem o Movimento da Forças Armadas e os militares da E.P.A.. À entrada de Setúbal, um homem irradiando alegria pelo derrube do fascismo e vitoriando as Forças Armadas, foi ao bolso e retirou um punhado de moedas, que atirou para a viatura, dizendo:
                “Tomem lá, bebem qualquer coisa. Vivam as Forças Armadas!”
Atravessámos Setúbal no meio de um mar de gente, seguindo-se Alto da Guerra, Gâmbia, Águas de Moura, Pegões e Vendas Novas, sempre com muito povo a ladear a estrada. Somos vitoriados por onde passámos e quando estamos na casa dos vinte anos temos tendência para nos sentirmos heróis. Pela minha parte, para além da grande honra de ter participado no 25 de Abril, o meu grande orgulho foi este facto ter permitido o derrube do fascismo, um regime hediondo que levou à prisão, tortura e morte de muitos portugueses, entre os quais amigos e familiares meus.


Vitor Pássaro
Furriel-miliciano em Abril de 1974





Sem comentários: