A vida continuou e os contactos entre gente que se considerava antifascista e pelo fim da guerra colonial prosseguiu, ainda que com as cautelas que a situação impunha, pois o regime fascista existia, a repressão mantinha-se e a Pide continuava a existir.
Até que chegou aquela noite mágica de 24 de
Abril de 1974.
“ESTA É A
MADRUGADA QUE EU ESPERAVA
O DIA INICIAL
INTEIRO E LIMPO
ONDE EMERGIMOS
DA NOITE E DO SILÊNCIO
E LIVRES
HABITAMOS A SUBSTÂNCIA DO TEMPO”
Sophia de Mello Breyner Andresen
Desconhecendo por completo o que estava
planeado, foram todos os Furriéis chamados para uma reunião urgente a realizar
na messe de Sargentos e onde o Tenente Andrade da Silva expôs a situação.
- “Está em curso uma acção militar com vista a
derrubar o regime, pôr fim à guerra colonial e instaurar a democracia”, pelo
que se impunha saber quem aderia à iniciativa.
Depois
de alguns esclarecimentos adicionais e de sabermos que os comandantes da E.P.A.
já tinham sido detidos, todos os Furriéis-Milicianos deram de imediato o seu
apoio a tal desiderato. Dado mais este passo pela E.P.A. para dar cumprimento
ao Plano de Operações definido e enquanto de procedia à formação das equipas
que iriam partir para o Cristo-Rei, pude conversar com outros militares sobre a
iniciativa em curso e a expectativa da deposição do regime, do fim da guerra
colonial e da instauração da democracia. O desejo de participar activamente nas
operações militares ficou, inicialmente, posto em causa, pois o Tenente Andrade
da Silva já tinha formado o seu pelotão, tendo eu e o Furriel Sequeira ido
manifestar-lhe o desejo de partilharmos com ele a honra da nossa participação
na iniciativa, o que foi atendido.
Pelas
03H00 da manhã de 25 de Abril de 1974 partiu a coluna militar com destino ao
Cristo-Rei, no Pragal, Almada, onde chegámos pelas 07H00. O trajecto desde
Vendas Novas ia sendo monitorizado pelo Tenente Nave e Aspirante Nuno, em viatura
civil, de modo a tentar evitar qualquer obstáculo que a G.N.R. pudesse vir a
criar, obstáculo que se verificou de forma inesperada quando a coluna militar
ficou “partida” por ter encerrado uma passagem de nível, mas que, após a
abertura da mesma, rapidamente foi retomada.
No
acesso ao Pragal e Cristo-Rei os militares da E.P.A. tiveram logo os primeiros
sinais de apoio do povo quando uma funcionária de padaria nos veio entregar,
com um enorme sorriso de satisfação (talvez por já ter ouvido os comunicados do
M.F.A. na rádio), um grande saco de plástico com mais de cem carcaças. Foi este
o primeiro sinal de que o povo de Almada estava com os militares, estava com o
25 de Abril.
Instalada
e em posição a bateria de obuses 8,8, com os obuses apontados para os
objectivos previamente definidos na Ordem de Operações, coube à companhia de
artilharia o cumprimento das acções
determinadas pelo Posto de Comando. A primeira acção consistiu em ir ao Forte
da Trafaria libertar os militares detidos na sequência do 16 de Março. Apesar
de ter havido algumas dificuldades criadas pelo comandante do Forte para a
libertação dos detidos e tendo este verificado a colocação do obus 8,8 em tiro
directo dirigido para os portões do forte, o objectivo foi alcançado, os
militares detidos foram libertados e, depois de breve passagem pelo Cristo-Rei,foram
apresentar-se no Posto de Comando do Movimento.Também na Trafaria e por
iniciativa exclusiva dos oficiais da E.P.A., todos os militares do Posto da
G.N.R. local foram detidos e levados para o Cristo-Rei, por forma a
desmobilizar qualquer eventual iniciativa que pudessem tomar contra o 25 de
Abril, sendo mais tarde mandados regressar ao seu Posto de trabalho.
Durante
a nossa estadia no Cristo-Rei, retenho o episódio passado com os fuzileiros,
(que na altura ainda mostravam grande ambiguidade em relação aos objectivos do
Movimento), e que pretendiam atravessar a Ponte sobre o Tejo de modo a
atingirem objectivos (para os militares da E.P.A.) pouco claros. Para o poderem
fazer, teriam que efectuar o sinal combinado de agitação das boinas sem o qual
nunca poderiam atravessar a ponte e gerar-se-ia um conflito bélico entre
militares. Na eventualidade deste conflito ocorrer, os portageiros da Ponte
seriam confrontados com uma situação delicada pois ficariam no meio de fogo
cruzado, sendo responsável por esta situação o Capitão Mira Monteiro,
comandante da companhia de artilharia, que impediu que chegasse a informação
aos portageiros para abandonarem os seus postos de trabalho.
Ultrapassada
esta dificuldade, pela correcta actuação dos fuzileiros, houve novo episódio
marcante na memória e que foi o relacionado com a fragata Gago Coutinho.
Estacionada em frente ao Terreiro do Paço, a fragata estaria pronta para
afrontar as forças do Capitão Salgueiro Maia. Se o fizesse, os três obuses 8,8
apontados para
a mesma por ordem do Posto de Comando, tê-la-iam afundado. Felizmente e por
acção do imediato, comandante Caldeira Santos, (conheci-o 40 anos mais tarde) e
dos restantes militares do navio, tal acção foi abortada.
Na
sequência das operações militares que o Movimento desenvolvia e à medida que
algumas dificuldades surgiam, o Posto de Comando determinou-nos a tarefa da
deslocação da companhia de artilharia até ao quartel da Polícia Militar, já
que, até aquela altura, a atitude desta unidade não era totalmente clara em
relação aos objectivos pretendidos. A companhia de artilharia sob o comando do
Capitão Mira Monteiro, ficou estacionada no largo próximo, tendo à sua frente a
Polícia Militar e no lado oposto o Regimento de Cavalaria 7, uma unidade leal
ao regime fascista. Felizmente que não houve qualquer conflito entre militares,
já que a decisão de estacionar entre duas unidades militares hostis não foi a
decisão acertada do ponto de vista militar. Ultrapassada esta dificuldade, os
nossos oficiais procederam a demoradas conversações com os militares da Policia
Militar, tendo os restantes militares da E.P.A. esperado ao frio e á chuva pelo
seu resultado e que, sendo positivo, terminou com os graduados de ambos os
lados em aberto convívio.
Durante
a permanência da E.P.A. no Cristo-Rei, os militares puderam sentir o carinho e
apoio das gentes do concelho de Almada (bem como dos concelhos próximos),
quando puseram de parte as rações de combate de que eram portadores e foram
alimentados com comida quente confeccionada durante os três dias de estadia
naquelas paragens.
Terminadas
as operações militares e antes da partida para o regresso a Vendas Novas, toda
a gente queria ter uma recordação daquele período inesquecível e pediam aos militares
uma bala. Após autorização dos nossos comandantes, a cada bala era retirada a
pólvora e desactivado o detonador, após o que era entregue a quem tinha
solicitado tal lembrança, notando-se a presença de muitos jovens.
Dada
ordem de regresso à unidade, todo o trajecto foi percorrido entre alas de gente
que ladeava as estradas. A despedida do Pragal foi emocionante, com milhares de
pessoas a vitoriarem o Movimento da Forças Armadas e os militares da E.P.A.. À
entrada de Setúbal, um homem irradiando alegria pelo derrube do fascismo e
vitoriando as Forças Armadas, foi ao bolso e retirou um punhado de moedas, que
atirou para a viatura, dizendo:
“Tomem lá, bebem qualquer
coisa. Vivam as Forças Armadas!”
Atravessámos
Setúbal no meio de um mar de gente, seguindo-se Alto da Guerra, Gâmbia, Águas
de Moura, Pegões e Vendas Novas, sempre com muito povo a ladear a estrada.
Somos vitoriados por onde passámos e quando estamos na casa dos vinte anos
temos tendência para nos sentirmos heróis. Pela minha parte, para além da
grande honra de ter participado no 25 de Abril, o meu grande orgulho foi este
facto ter permitido o derrube do fascismo, um regime hediondo que levou à
prisão, tortura e morte de muitos portugueses, entre os quais amigos e
familiares meus.
Vitor
Pássaro
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