sábado, 10 de janeiro de 2009

AEROGRAMA DE ANGOLA


BREVE INTRODUÇÃO

“ Perante tanto ruído, eu, em 1972, Alferes de Artilharia, sem ser génio militar, perante a desorganização da guerra, a falta total de portuguesismo das populações, a desmotivação dos militares, a incompetência de alguns comandantes, a falta de meios: armamento e transportes e a ausência adequada de formação dos militares, nomeadamente dos oficiais, pronunciei-me sobre a derrota militar e política da guerra colonial.

Dou conhecimento desta carta, já que muitos falam do hoje para o ontem, pretendo falar de antanho para hoje, talvez seja estúpido, mas segundo a psicologia não há memórias puras nem fidedignas sobre o passado, são sempre construções com um misto de real, ficção, mais o que se foi acrescentando por ouvir dizer e até sonhar. Contrariamente os documentos produzidos nesse passado retratam o exacto pensamento daqueles momentos. Será que os que tanto falam sobre o passado não escreveram nada na altura? Ou será que alguns cantavam Hossanas a esse passado e agora querem escondê-lo, ou pior branqueá-lo.

NOTA: algumas palavras foram suprimidas, porque apesar de serem a linguagem mais precisa e honesta, continuo a pensar que o são, poderiam ferir sensibilidades, e para não usar a bolinha vermelha, lá vão os pontinhos, percebe-se muito bem o porquê do português vernáculo, claro…




Damba 13 Novembro 72

Caro Pereira ( hoje, coronel de artilharia Custódio Pereira)

Recebi a tua carta e mais uma vez apercebi-me que todos nós andamos a sentir o mesmo. Andamos a sofrer do grande mal que é a frustração, aliás, os meus sentimentos, ideias e pensamentos acerca de toda esta história estão bem patentes na carta que há dias te escrevi, e que por esta altura já devias ter recebido.

Quanto aos golpes de toda esta malta já nada sinto, pois que numa guerra destas, sem história e sem futuro, ou MELHOR SEM OUTRO FUTURO que não seja o FRACASSO ABSOLUTO, parvos são aqueles que cumprem o seu dever e arriscam a vida. Não te metas pois em becos sem saída, manda esta m…. toda para o c…..,pois toda esta gente tem pleno conhecimento de quanto se está a passar, e cada vez mais nos f……

Não sei se sabes que os capitães proveta vão ser promovidos ao respectivo posto, claro que muitos deles por necessidade cá terão de ficar, e lá estaremos nós a alinhar à esquerda dessa nova remessa ……, e, mais uma vez, tudo acontecerá sem que nós carneiros feitos tomemos uma atitude.

Pior que isto são os boatos que já correm acerca dos Majores Provetas, os quais serão recrutados entre os capitães do mesmo fabrico que depois de um estágio na Academia Militar virão como oficiais de Operações, enquanto, os ….. do quadro continuarão a aguentar 4 comissões, como capitães e na melhor das hipóteses lá para a 5º comissão vimos como oficias de operações, mas com o posto de capitão. Não calculo até que ponto será esta p…. verdade, porém depois de quanto tenho observado, nada me admira que tal viesse a acontecer.

Caro Pereira perante tão evidentes factos começo a sentir vergonha de pertencer a esta comunidade que PASSIVAMENTE TUDO ACEITA, só falta que c….. em cima de nós no real e efectivo sentido, pois tudo o resto já fazem sem rodeios.

A propósito da minha promoção ( a tenente) chegou há dias uma nota a referir que tinham enviado o meu processo para a 1º Repartição, claro que fiquei surpreendido, porque vocês fizeram mil e tantos exames médicos, e eu não fiz nenhum, talvez seja o principio do equilíbrio natural das coisas, segundo parece esta p….. até tem algumas leis cientificas que a vai regulando.

Quanto ao fim da nossa comissão….. é de todo conveniente que o teu batalhão procure saber o mesmo, pois que cada um de nós pode ser, que dentro de todo este sistema, pertença a guerras totalmente diferentes.

NOVAMENTE TENHO EM MENTE A EFECTIVAÇÃO DE UMA REUNIÃO COM TODA A MALTA DOS POSTOS SUBALTERNOS, AFIM DE EXPORMOS A QUEM DE DIREITO A NOSSA MISERÁVEL SITUAÇÃO, E EXIRGIRMOS A TOMADA DE MEDIDAS POSITIVAS E IMEDIATAS.

Veremos o que se conseguirá, mas isto não passará de mais um sonho de uma cabeça louca.

Não sei, mas sinto-me à beira do colapso, quando penso em toda esta m…., até parece que dou em louco, pois nunca me senti tão inútil na vida, como aqui e naquele período em que em Vendas Novas, feito burro e animal sem personalidade andei com o parvalhão do A. a pintar paus, p… que o p….., mas foi ele o 1º gajo que deu as dimensões do nosso papel – o de construtores de …… – é de dizer como o outro que p…. de hipótese.

Do
A. da Silva


PS:

Sobre os tristes e lamentáveis episódios, acima referidos que tiveram lugar no fim do nosso tirocínio, com flagrante desrespeito por compromissos assumidos, esclareço que, em 1971, o curso de Artilharia, de que era o seu chefe, recusou-se colectivamente a fazer as provas do pentatlo no final do tirocínio curricular do curso, apesar de todas as ameaças de que nos aconteceria isto e aquilo, segundo, o capitão director do curso que acabou por chegar muito, muito, longe,

Nos idos do 25 de Abril defendi este capitão, quando na unidade o queriam sanear. Defendi-o com base em duas premissas: era estimado pelos militares que comandava, era tecnicamente competente e dedicado, e estes dois factos são para mim determinantes para o bom juízo de um comandante. Nunca os questionei, como aos militares que comandei, como aliás, com toda as pessoas com quem me relaciono ou quem me relacionei quanto ao seu partido, ideologia ou religião, por mais intima que tenha sido essa relação, como nunca prejudiquei ou beneficiei alguém por qualquer daquelas circunstâncias.

6 comentários:

Marília Gonçalves disse...

CARO COMPANHEIRO

a primeira ideia que me assalta é a de que força nunca lhe faltou
a segunda que a sua visão militar e política deixaram desde jovem ver a sua inteligência e capacidade em analisar factos que dado a sua juventude podiam não ser evidentes.
Você percebeu.. pena que o mesmo não Sucedesse com toda a gente
e diante de tao cabal prova quem ousará duvidar?
abraço sentido
Marília

Jerónimo Sardinha disse...

Meu Caro Andrade da Silva,

Os meu parabéns pela tua descoberta no fundo do “caixote”, de um exemplar do famoso «bate-estradas», o velhinho e muito útil AEROGRAMA, que a nossa juventude tanto utilizou.
As relíquias que tu guardas!

Finalmente deste vida, há prometida carta (quase um ano).
E que carta.
Pena é, que já poucos se lembrem e a maioria ignore, em absoluto, do que falas e do que foram esses tempos.
Quando ouço grandes arroubos e laudos sobre o nascimento do 25 de Abril de 1974, sorriu e se possível, desvio-me. Tu sabes e tens presente, documentado e vivo, o quanto maturado, revoltado, sofrido, angustiado e desejado ele foi, desde muitos anos antes de...
Atrevo-me a dizer, que o seu fermento vem desde muito antes da própria guerra colonial, tendo esta sido o esteio que cimentou a sua certeza e a concretização, de facto e no terreno.

Não vou comentar o teor da tua carta, ela é uma epístola sagrada, entre dois camaradas que conheceram e sofreram na pele, em simultâneo e no terreno, as agruras, que estas gerações não podem imaginar, quanto mais avaliar.
Cingir-me-ei somente a factos técnicos ou generalizados. A intenção, o ardor, o amargo e o prenúncio de resolução que lá se advinha, fica, por pudor e mérito, para ti e para o destinatário.

A derrota estava implícita desde o primeiro momento.
Tudo foi mal conduzido, mal pensado, dirigido pelos interesses financeiros e políticos da época e do regime, sem ter em conta a realidade (distante e diversa) onde se travava e as razões que a ela levaram.
A derrota estava implícita desde há 500 anos.
A maioria dos naturais do interior, conheciam “brancos”, mas muitos nunca ouviram falar em, ou, de português. Nunca viram a Bandeira Nacional. Nem sabiam de sua existência. Como tu, também nunca compreendi que espécie de conquista era aquela, em que o conquistado não sabia quem era, nem que tinha havido, um conquistador.

Referes a estafada estrofe do pessoal e do material. Como se podem preparar pessoas, ignorando a que se destinam? Quantos quadros superiores tinham conhecimento da existência do ultramar, para além das cidades?
Só depois de regressar, alguns vinham habilitados a tal instrução e mesmos esses, careciam de meios práticos, técnicos e logísticos, que lhe não eram disponibilizados, nem reconhecidos como necessários pelos superiores e pelos políticos. A malta, lá no sítio, desenrascava-se. Ponto. Não era preciso eles serem incomodados. Nem o admitiam.
No que toca a material, nunca te aconteceu, ou ouvistes aquela de distribuir armas de determinado calibre ou marca e munições de outra diversa?
A nossa guerra era tão moderna e apoiada, que no início do meu tempo, ainda se equipava para embarque com Mauser/1945. Lembras-te delas?

Tens razão em ambas as hipóteses que alvitras. Há quem queira esconder o passado e há ainda mais, quem pretenda branqueá-lo. Das mais diversas formas.

As arbitrariedade e os abusos de autoridade, eram o comum da vida militar, ao que julgo saber, em todas as armas. Um galão a mais, dava direito a todos os disparates, chamados de disciplina. Era doloroso o tratamento entre superiores e inferiores, em quaisquer patentes. É evidente, que havia gente séria, honrada e digna, mas que eram poucos, eram.

A tua defesa de alguém com que não concordas, mas que consegues reconhecer como capaz, competente ou dedicado, não me surpreende. Basta escutar um pouco do teu percurso, para ajuizar isso. De outra forma, nunca terias passado pelos martírios e injustiças por que passas-te.

Face ao tempo e mentalidades actuais, fica-me alguma dúvida se estaríamos assim tão certos, ou se os “outros” não seriam melhores conhecedores do povo que tinham e dos seus desejos, pelo menos, em maioria. Por ignorância? Talvez! Mas nesse caso, a mesma ignorância continua a manifestar-se hoje e quase do mesmo modo.
Dúvidas? Espera pelas próximas eleições!!!

Muito obrigado, de novo, pelas tuas memórias, inquestionáveis, até por documentadas e por partilhares connosco coisas tão íntimas como as “cartas da guerra”

Grande, solidário e fraterno abraço,
Jerónimo Sardinha

Ana Daya disse...

Meu Caro Amigo Andrade da Silva,

Em 72 ainda eu nao tinha entrado para a escola…
Como compreendes, nao sei muito bem do que falas no que acabaste de editar, no entanto noto a tua indignacao pela injustica e ansia em querer mudar o que esta mal, com as “provas” e texto que apresentaste.

Admiro a tua forca e persistencia em querer remar contra a mare! So as pessoas integras se preocupam com estes assuntos!

Pior que mentir ou ate pior que alguns crimes, considero a omissao e a cumplicidade igual ou pior que tudo isso! E tantas pessoas conseguem viver assim...

Ja Brecht dizia “ O que não sabe é um ignorante, mas o que sabe e não diz nada é um criminoso.”

Se puderes, nao te martirizes tanto com o passado!

Ana Rute

andrade da silva disse...

Caro jeronimo

esta é uma carta para levar a Garcia tenho feito a minha parte, espero que todos façam a sua. tu também és do que fazes atua, como a nossas queridas companheiras desta aventura ponto.

Os vampiros têm um grande dominio.

abraço
asilva

Anónimo disse...

1972!
Um tempo que existiu… mas no qual Eu ainda não era!...Quando nasci já tudo era assim… Passaram mais de três décadas…1972!...
O que quer dizer para mim!?
Inicialmente, apenas Guerra!... Homens Corajosos que lutaram por algo em que acreditaram… Hoje, continuam a ser Homens Corajosos, mas que cumpriram o que alguém determinará…
Talvez, guiados “pela nossa fé eterna e imortal defenderemos com o nosso sangue as cinco quinas de Portugal”.
O facto, é que o clarim clamou e muitas vidas marcharam…

Valeu a pena?
Cada um terá opinião diferente!...
Sabemos que nada é perfeito, aliás, a perfeição cria um vazio… mas, só no silêncio a verdade de cada um vinga…

Não sei se são parvos aqueles que cumprem. Mas, sei com certeza, que parvos, são aqueles que acreditam que nada podem mudar…
Que ficam deslumbrados a ouvir o barulho das luzes, mas não ouvem o clarim clamar!
E porquê será?
Será porque ninguém (ou poucos), procuram aquilo que desconhecem!? É medo?
Ou será porque quando nascemos já era assim? Alguém fez e fará por nós?

Por vezes, parece que temos mesmo de “morrer”, para podermos renascer emocionalmente…para com outros olhos ver o mundo.
Se calhar, é por isso, que tudo vale a pena, mesmo quando não percebemos de imediato porquê…. Alguma coisa devemos aprender sempre!?

1972! Não o vivi! Vivi 2003 também em Vendas Novas!
Não tem qualquer comparação possível, claro! Não tínhamos uma MAUSER, nem uma guerra em vista! Só as nossas próprias guerras e uma G3!
Muitas vezes me perguntei: Para que é isto!?!?
Não pintei paus! Mas, empurrei tantas vezes o planeta sem saber para quê!!!
Hoje sei! E sei também, que nada é por acaso!

Não interessa mudar o mundo. A vida é uma viagem e o sentido da vida é sermos nos próprios e termos paz com isso.
Assim, cada verdade se fará lentamente…é um começo, não?

Há pessoas que sem sabermos são Templos, são Muralhas – Andrade da Silva é assim! Um Homem que leva em si qualquer coisa maior que ele. Um Homem que resiste ao fogo!
Continue a fazer-nos ouvir o clarim, mesmo que as vezes não o compreendamos à primeira!

Foi e será sempre uma grande honra trabalhar e aprender consigo!
Com apreço,
Estela

andrade da silva disse...

Estela
Que prazer, que honra ler-te e saber que na esfera da tua acção, como psicóloga, estás a trabalhar,onde é preciso uma grande devoção e onde melhor se aprende sobre o significado da vida.

Como sabes sempre admirei muito aqueles que fazem o que não sou capaz, por isso tenho uma grande veneração por quem trabalha com doentes terminais ou com crianças ou adultos com grave deficiência, hoje, o dever de psicólogo e de cidadão levou-me a agir num caso de histeria e vi quão dificil é lidar com estas situações,por isso vos admiro muito e todos temos de aprender uns com os outros, mas contigo aprenderemos muito, tu já vês para além daqueles que só contactam com a vida.

Manda os teus textos para serem publicados este espaço é nosso de todos os cidadãos e de todos os assuntos.

Vendas Novas foi diferente para ti, para a Rute, para a Ana, para o Ricardo e para tantos outros amigos e ainda bem, mas a Escola Pratica de Artilharia é um marco da nossa Liberdade foi a primeira Unidade a ser tomada para se pôr em linha de combate para derrubar o fascismo, e orgulho-me muito de ser o chefe da equipa que assaltou o gabinete do comandante, sobretudo porque em cima da hora tive de substituir o elemento mais operacional da equipa e substitui-lo pelo elemento mais pacifista da unidade, decisão crucial de que me orgulho, assim não borregamos.

Vendas Novas por lá passamos e isso faz parte do nosso património pessoal.

agradeço a generosidade e a amizade das tuas palavras.
Um grande abraço
asilva