quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Em Frente pela PAZ Universal




Nas Consequências da Guerra


Encontrei-a na esplanada dum café interior dum grande hospital parisiense.
Chamou-me a atenção, o cansaço marcado no rosto a contrastar estranhamente com a doçura do olhar. Jovem? não era.
Sem saber como, estávamos a conversar as duas.
Sempre com o mesmo ar, começou a contar-me sua história, Já que ambas com vários exames marcados nos encontrávamos no intervalo entre duas consultas.
Ela viera há anos, fugida à guerra, da Bósnia. Trouxera com ela dois filhos um rapaz e uma menina, no momento do nosso encontro em plena adolescência. Olhava-a, escutava-a e nunca consegui atribuir-lhe idade. Pela dos dois filhos depreendi que se situaria entre os quarenta ou cinqüenta, mas aparentava mais, se não fosse aquela persistente doçura no olhar.
Contou-me que do lado da mãe, toda a família tinha sido morta. Não deu detalhes e eu não lhos pedi. Escutava apenas, impotente testemunha duma dor infinda e em silêncio quase religioso continuei a ouvi-la. Viveram em caves de prédios bombardeados, comendo o que podiam, escondidos sempre. No exterior lá em cima ouviam-se as bombas e os combates. Os filhos nessa altura pequeninos; ia ela fazendo frente ao terror próprio e ao das crianças . Certo dia viu apavorada entrar um grupo de homens pelo esconderijo adentro. Disse-me que tiveram sorte, eram do bom lado, que nada lhes fizeram de mal. Mas esse incidente veio aumentar o pavor em que viviam, humanos ratos a viver em tocas, que a maldade dos homens obrigava. Contou- me mais o estado de espírito do seu pequeno grupo familiar, sem nunca detalhar os acontecimentos vividos por ela e pelos filhos.
Pudor ou incapacidade de reviver através de relato doloroso as peripécias trágicas que a guerra lhes impusera. Contou em seguida que o desespero a fez procurar boleia para fugir com as crianças e que por sorte um autocarro que vinha para Paris, os deixou entrar e os trouxe para a capital francesa
Depois acabou dizendo que tinha a seguir uma sessão de choques elétricos, e que no final, perto das cinco a filha a viria buscar visto que não a deixavam sair sozinha depois do tratamento, que segundo o que me disse era para a vida. Mas disse-me que o estado da filha era muito pior que o dela, e que vivia enclausurada em casa, saindo apenas quando a isso por algum motivo de força maior era obrigada.
Sem palavras para a reconfortar, pelo dito e pelo não dito, limitei-me a deixar que a minha expressão lhe manifestasse tudo o que me ia por dentro.
Ao fim do dia, acabados também os exames para que viera, fui encontrá-la no mesmo sítio, sentada a uma mesa com a cabeça apoiada nas mãos, cotovelos sobre a mesa...
Estava ali à espera da filha que não aparecia e não sabia como voltar para casa. Estava pronta a oferecer-me para que eu e meus acompanhantes a levássemos a casa. Mas o olhar dela ensombrou-se como temendo a oferta que pressentia. Lesto o pensamento levou-me a tentar pôr-me no lugar dela. Fugida à guerra, com perturbações nervosas aparentemente irreversíveis, tanto nela como na filha, as confidências que me fez, por brusca simpatia, cediam ao medo que a acompanhava sempre. A casa era o abrigo desconhecido de todos, o tecto tranquilo, era possível que nessas circunstâncias, preferisse manter no silêncio o local onde ela e os seus abrigavam sua dor e o terror das fugas e perseguições.
Ali continuava à espera da filha, que não chegava, o que a afligia mais ainda. Não sabia como fazer, foi telefonar à filha que acabou dizendo que não se sentia bem e era incapaz de ir buscar a mãe
A aflição crescente em que a via, sugeriu-me que talvez fosse possível, se ela fosse falar com a equipa que a seguia, que eles chamassem um taxi que a levaria até à porta de casa, o que,por conseguinte não a obrigava a nenhum esforço. e assim foi.Fez-me um ultimo sorriso, pálido e ansioso, receosa pelo estado da filha, eu, ali fiquei na comunhão daquela dor para ela eterna, fazendo que um tropel de perguntas se seguissem no meu cérebro.
Mais amante da PAZ e contra qualquer guerra ofensiva, vi diante de mim erguidos e terríveis, os efeitos que as marcas indeléveis da maldade humana, levada ao paroxismo, por guerra sem razão,
Causa de tanto sofrimento a projectar-se no futuro de quem a viveu e consequentemente no futuro de cada ser humano, já que habitantes todos do mesmo Espaço a Terra, somos companheiros de viagem e inevitavelmente o bem e o mal de cada um recai sobre o todo, sobre cada ser humano numa total e profunda quebra de harmonia o que tornará a sociedade mais violenta e mais desumana.
Muitos fogem a esta realidade como se o não olhar e a fuga os protegesse, quando afinal apenas prolonga o gelo, o frio social que aniquila o que pode haver de bom em nós, e nos torna cúmplices silenciosos do crime e responsáveis de não assistência a pessoas em perigo, e esse frio da indiferença, instala-se corrosivo no nosso interior e vai ganhando terreno no aniquilamento dos nossos sentimentos, destruindo a nossa afectividade e a nossa capacidade de sentir, transforma-nos em robôs não humanos, de que apenas mantemos a aparência. Ignorando o sofrimento alheio, que é afinal o dum irmão, semelhante, que tinha à partida a mesma vontade de tranquilidade e respeito, de PAZ, que merece ou deve merecer cada um; é um crime voltado contra nós mesmos, porque nos mata interiormente e reduz ao silêncio a nossa capacidade de apreciar o belo o bom e o que é justo, e afasta para sempre a alegria e a capacidade da partilha numa anestesia triste e monótona das nossas existências, por isso muito mais pobres distantes e solitárias.
Marília Gonçalves

5 comentários:

andrade da silva disse...

Marilia

Face à riqueza e sentimentos do teu depoimento ia publicar outro post que não edito apesar da sua actualidade a nivel nacional e lá mais para a madrugada também darei o meu depoimento sobre o que vi na Bósnia.

Um grande abraço e um grande bjnho pelo teu depoimento, quando te voltares a encontrar com essas nossas irmãs diz-lhes que muitos conhecem a sua dor e as,os acompanham.
asilva

Marília Gonçalves disse...

Capitão de Abril, Companheiro

visto que testemunhamos sobre guerras, deixo aqui um poema que escrevi aquando da PRIMEIRA GUEERA NO IRAQUE
Aqui pode bem dizer-se, tal pai tal filho, mas a primeira guera ao Iraque teve a agravante de haver uma coligação. Tantos países, empenhados na destruição de um País com tão antiga história, e quando nas notícias vi o horror do fogo das bombas no céu de Bagdad, tive verdadeiramente a percepção terrível que era uma Cultura ( faz-me lembrar o nazi que dizia que quando ouvia falar em Cultura puxava pela sua arma) que era visada, uma civilização que destruíam. Infelizmente não me enganei
Do Iraque que o seu povo amou e conheceu que resta hoje, se até os Centros da Cultura, A
Biblioteca de Bagdad, depósito de escritos milenares foram destruídos?
Importa para o caso o que foi ou deixou de ser o Sadam?
O que sabemos é que era um pais próspero e hoje é uma ruína que acoita bandidagem e os mais acesos representantes que os USA diziam querer combater. Para a guerra “limpa” de que faziam alarde foi realmente uma limpeza, matou-se ali, como agora e de há tanto na Palestina, inocentes civis, crianças, e talvez a Capital das Mil e Uma Noites não consiga ( a não ser que A UNESCO intervenha)nunca mais reaprender a sua própria história e o orgulho, o brio da sua magnífica Cultura.
Para poder reencontrar na PAZ ainda e sabe-se lá por quanto tempo inexistente, a esfuziante alegria que conheceu dantes!




Transformação sociedade
antes o sócio que o irmão
assim na perversidade
morre a civilização.
Ó torpe ignóbil assédio
ó abutres ó chacais!
De quanto sangue te nutres
ó mundo para aonde vais?
De que tempo antiga era
trazes nos teus dentes vícios?
Ó animalesca fera
que matas em teus ofícios.
Ó sociedade corrupta
podre civilização!
Antes viver numa gruta
que escravo na tua mão.

Ó ignomínia de ser!
Que desgosto sociedade!
A teus pés vêm morrer
tempos vindos doutra idade.

Marília Gonçalves
(a guerra prossegue no Iraque.
morre povo. Crianças. Vejo


morrer e sofro.
se a loucura nos salvasse da
loucura.)

Ana Daya disse...

Cara Marilia,

Ha uns bons anos ouvi ou li, ja nao me lembro, um excentrico musico brasileiro dizer que o mal do secudlo 20 era a solidao e eu concordo plenamente.

Hoje em dia pode-se fazer tudo, desde que nao se interrompa a carreira. Tornamo-nos maquinas e encontramo-nos desesperados porque nao sabemos voltar a “sentir”.

Algo muito simples mas que a cada dia que passa fica mais distante de nos.

Ate os nossos rostos estao cada vez mais estranhos, meios plasticos e pouco acessiveis e sem expressao.
Conseguimos hoje viver mais tempo, retardamos o envelhecimento, conseguimos ficar mais belos fisicamente e… sozinhos!

O tempo que dedicou a ouvir a senhora nao tem preco!

Passamos o tempo ocupados com o nosso nariz e esquecemo-nos que o tempo para ser feliz, ou fazer alguem feliz eh tao curto, e que cada instante que passa nao volta mais.

So pessoas boas conseguem por a sua curiosidade de lado e conseguem arranjar tempo para ouvir sem questionar (podia ter usado esse tempo para fazer coisas que gosta, certo?). Indirectamente ajudou uma pessoa que pecisava somente falar um pouco sobre o seu passado triste, lutador mas ao mesmo tempo marcante e tao chocante para ser superado!

A nossa vida actual faz-nos desperdicar a maioria das vezes ate um simples sorriso, quando a pessoa que ve hoje na rua podera vir a ser um bom amigo.

Quintana dizia que o excesso de gente impede de ver as pessoas.

Nao imagina como lamento as guerras e ainda mais as vitimas de qualquer guerra! Os homens sao capazes de matar e lutar como fazem os animais como se nao houvesse diferenca entre eles.

Bem haja pela sua accao sem preco e altruista!

Ana Rute

Marília Gonçalves disse...

Caríssima Ana,

Quando escutei o que me contava essa senhora da Bósnia, o tempo que lhe dedicava
não me atravessou o espírito . Agora que mo fez notar, penso que talvez eu tenha recebido mais do que dei
Encontrei calor humano na vítima de tanto sofrimento...
Esse calor que tanto falta à nossa sociedade, é apenas a prova duma ideia que persigo
O Ser Humano tem vertentes boas, a procurar e a desenvolver sempre que possível
Dar um minuto nosso e
receber tanto alento de quem dele tanto precisa..
Afinal ambas teremos dado de nós e ambas termos recebido, pondo as coisas nestes termos.
O tempo aqui não conta, importante é a certeza de que a Humanidade se levante digna e fraterna
De todo os abismos e sofrimento
Abraço amigo

Marília Gonçalves

Marília Gonçalves disse...

Companheiro, Ana
passei por aqui, numa viagem a dias idos, e vou_lhes então continuar a história, na Primavera passada, lembra Companheiro estive hospitalizada duas semanas em Paris, e como as coisas são... qual não é o meu espanto quando vejo entrar no meu quarto a mesma senhora que entrava por um dia, vinha para fazer o tratamento dela,ficou muito espantada de a reconhecer e parecia satisfeita com isso!
disse-me que trabalhava um pouco e que estava um bocadinho melhor, mas que a filha continuava fechada em casa e recusava-se a ver gente! como alguns anos depois do primeiro encontro pude constatar que o mal feito pela guerra deixa fundas raízes de sofrimento no ser humano!
Saiba Companheiro que por esse humano sofrimento de que você meu amigo é especialista, precisamos que a sua grande força interior, não o conheço pessoalmente é da força que sinto na sua escrita e na que sei de si Meu Capitão, pela nossa Madrugada de Abril, pois por essa força espero que supere o grande desgosto que vive da perda de sua querida mãe! e que pense que sua mãe continuará aqui presente em cada justa luta travada, por isso aqui aguardamos que recupere, o ser humano precisa de si, com essa força convicta que o caracteriza!
Abraço Capitão!
Abraço Ana e volte sempre que possa, aqui também é sua casa

vossa sempre

Marília