Não interessa só aos linguístas!
Como falamos a democracia?
Na bela cidade de Durban, falávamos eu e outros escritores africanos da surpresa do modo como, no Zimbabwe, tantos ainda apoiam Robert Mugabe. Havia, no grupo, escritores de vários países de África. Aproveitámos o que melhor há nas conferências literárias: os intervalos. A nossa perplexidade não se limitava ao caso zimbabweano. Como é que povos inteiros, em outras nações, se acomodaram perante dirigentes corruptos e venais. De onde nasce tanta resignação?
Uma das razões dessa aceitação reside na forma como as línguas se relacionam com conceitos políticos da modernidade. Por exemplo, um zimbabweano rural designa os seus líderes nacionais como entidades divinizadas, fora das contingências da História e longe da vontade dos súbditos. O mesmo se passa em quase todas as línguas bantus.
A questão pode ser assim formulada: como pensar a democracia numa língua em que não existe a palavra «democracia»? Num idioma em que «Presidente» se diz «Deus»? Nas línguas do Sul de Moçambique, o termo para designar o chefe de Estado é «hossi». Essa mesma palavra designa também as entidades divinas na forma dos espíritos dos antepassados, traduzindo uma sociedade em que não há separação da esfera religiosa.
Parece uma questão de ordem linguística. Não é. Trata-se do modo como se organizam as percepções e as representações que uma sociedade constrói sobre si mesma. A sacralização do poder não pode casar com regimes em que se supõe que os líderes são escolhidos por livre votação. Numa sociedade em que os súbditos se convertem em cidadãos.
Esse assunto escapa muitas vezes a quem se especializou em organizar seminários sobre cidadania e modernidade em África. A problemática política é vista, quase sempre, na sua dimensão institucional, exterior à intimidade dos cidadãos. Quando o participante do seminário explicar à sua comunidade o conteúdo dos debates usará a sua língua materna. E sempre que se referir ao Presidente ele fará uso do termo «deus». Como pedir uma atitude de mudança nestas circunstâncias?
O que se pode fazer? Será que os falantes destas línguas estão condenados à imobilidade por causa desta inércia linguística? Na realidade, existem tensões entre a lógica interna de algumas destas línguas e a dinâmica social. Estas tensões não são novas e sempre foram resolvidas a favor da adaptação criativa e da criação de futuro.
Já no passado, as culturas africanas (e todas as outras em todos os continentes) tiveram que se moldar e se reajustar perante aquilo que surgia como novidade. Eu mesmo testemunhei o modo veloz como as línguas moçambicanas se municiaram de instrumentos novos, roubando e apropriando-se de termos não próprios.
Com o uso generalizado esses termos acabaram indigenizando-se. Sem drama linguístico, sem apoio de academias nem de acordos ortográficos os falantes dessas línguas «pediram» de empréstimo palavras de outros idiomas. Moçambique é, nesse domínio, um caldeirão dessas mestiçagens.
Os nacionalistas africanos não ficaram à espera que um vocabulário apropriado nascesse nas línguas maternas dos seus países. Eles começaram a luta e essa mesma dinâmica contaminou (mesmo com uso de termos e discursos inteiros em português) as restantes línguas locais.
Tudo isto nos traz a convicção do seguinte: a capacidade de questionar o presente necessita de língua portadora de futuro. A necessidade de sermos do nosso tempo e do nosso mundo exige línguas abertas ao cosmopolitismo. África – tantas vezes pensada como morando no passado – já está vivendo no futuro no que respeita à condição linguística: quase todos africanos são multilingues.
Essa disponibilidade é uma marca de modernidade vital. O destino da nossa espécie é que cada pessoa seja a humanidade toda inteira.
(Crónica de Mia Couto, escritor moçambicano, publicada na edição de Abril da revista África 21)
"O destino da nossa espécie é que cada pessoa seja a humanidade toda inteira."
Mia Couto
3 comentários:
Apelo aos Animadores do Blogue
Estimados Companheiros
e se todos viéssemos participar com nossas opiniões?
Como Animadores do Blogue seria bom que lançássemos um hábito de intervenção, para que os leitores ouvindo tons diversos, participem em massa com o tom que for o deles.
Enquanto não houver maior participação, talvez os leitores não tenham muita vontade de deixar aqui a sua opinião.
Bem sei que cada um de nós ao participar, está ou pode estar a obrigar-se a um esforço suplementar. Mas é porque acreditamos no resultado do colectivo esforço, do colectivo testemunho que aqui constam nossos nomes e que vamos dando por amor à causa o tempo e o que de melhor podemos dar, às vezes em troco duma passeata que não damos, ou dum esforço suplementar no desempenho de outra tarefa.
Mas isso acontece com todos nós
No entanto, aqui respira-se e fala-se a Língua de Abril, e por isso mesmo continuamos, para que nunca ninguém tenha a tentaçao de a pôr entre as línguas mortas.
VIVA O 25 DE ABRIL
VIVA A AMIZADE ENTRE TODOS OS POVOS DO MUNDO
VIVA PORTUGAL
Marília Gonçalves
Subscrevo o apelo por inteiro
Abraço
asilva
Curvando-me, numa vénia de admiração e respeito, perante Mia Couto.
José-Augusto de Carvalho
Enviar um comentário