quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

25 de Abril de 1974 - Um porquê do POVO...



Numa altura em que recomeça a estar na moda a lavagem e o branqueamento do regime ditatorial do "Estado Novo" e do seu principal mentor, mas não único obreiro, António de Oliveira Salazar, porque as vozes que se ouvem e incomodam surgem de quadrantes vários, até de alguns que deveriam ter muita contenção, pois não só foram servis durante, como viraram rápido para "outras modas", leia-se DEMOCRACIA, impõe-se não esquecer alguns factos.
Para tal, nada melhor do que desenterrar da memória nomes, datas, e acontecimentos. Depois, cada um de nós que se entenda com a própria consciência e AJA de acordo.
O que abaixo se reproduz, não é exaustivo. Muitos mais existiram e muitos mais incómodos e crimes foram cometidos contra cidadãos honestos, jovens, velhos, mulheres e crianças. Nada detinha a sanha esquartejante do regime e seus algozes. POR ISSO, A RAZÃO DO PORQUÊ DO 25 de ABRIL de algum do POVO de Portugal.


Relembrando:

1931, o estudante Branco é morto pela PSP, durante uma manifestação no Porto;
1932, Armando Ramos, jovem, é morto em consequência de espancamentos; Aurélio Dias, fragateiro, é morto após 30 dias de tortura; Alfredo Ruas, é assassinado a tiro durante uma manifestação em Lisboa;
1934, Américo Gomes, operário, morre em Peniche após dois meses de tortura; Manuel Vieira Tomé, sindicalista ferroviário morre durante a tortura em consequência da repressão da greve de 18 de Janeiro; Júlio Pinto, operário vidreiro, morto à pancada durante a repressão da greve de 18 de Janeiro; a PSP mata um operário conserveiro durante a repressão de uma greve em Setúbal
1935, Ferreira de Abreu, dirigente da organização juvenil do PCP, morre no hospital após ter sido espancado na sede da PIDE (então PVDE);
1936, Francisco Cruz, operário da Marinha Grande, morre na Fortaleza de Angra do Heroísmo, vítima de maus tratos, é deportado do 18 de Janeiro; Manuel Pestana Garcez, trabalhador, é morto durante a tortura;
1937, Ernesto Faustino, operário; José Lopes, operário anarquista, morre durante a tortura, sendo um dos presos da onda de repressão que se seguiu ao atentado a Salazar; Manuel Salgueiro Valente, tenente-coronel, morre em condições suspeitas no forte de Caxias; Augusto Costa, operário da Marinha Grande, Rafael Tobias Pinto da Silva, de Lisboa, Francisco Domingues Quintas, de Gaia, Francisco Manuel Pereira, marinheiro de Lisboa, Pedro Matos Filipe, de Almada e Cândido Alves Barja, marinheiro, de Castro Verde, morrem no espaço de quatro dias no Tarrafal, vítimas das febres e dos maus tratos; Augusto Almeida Martins, operário, é assassinado na sede da PIDE (PVDE) durante a tortura ; Abílio Augusto Belchior, operário do Porto, morre no Tarrafal, vítima das febres e dos maus tratos;
1938, António Mano Fernandes, estudante de Coimbra, morre no Forte de Peniche, por lhe ter sido recusada assistência médica, sofria de doença cardíaca; Rui Ricardo da Silva, operário do Arsenal, morre no Aljube, devido a tuberculose contraída em consequência de espancamento perpetrado por seis agentes da Pide durante oito horas; Arnaldo Simões Januário, dirigente anarco-sindicalista, morre no campo do Tarrafal, vítima de maus tratos; Francisco Esteves, operário torneiro de Lisboa, morre na tortura na sede da PIDE; Alfredo Caldeira, pintor, dirigente do PCP, morre no Tarrafal após lenta agonia sem assistência médica;
1939, Fernando Alcobia, morre no Tarrafal, vítima de doença e de maus tratos;
1940, Jaime Fonseca de Sousa, morre no Tarrafal, vítima de maus tratos; Albino Coelho, morre também no Tarrafal; Mário Castelhano, dirigente anarco-sindicalista, morre sem assistência médica no Tarrafal;
1941, Jacinto Faria Vilaça, Casimiro Ferreira; Albino de Carvalho; António Guedes Oliveira e Silva; Ernesto José Ribeiro, operário, e José Lopes Dinis morrem no Tarrafal;
1942, Henrique Domingues Fernandes morre no Tarrafal; Carlos Ferreira Soares, médico, é assassinado no seu consultório com rajadas de metralhadora, os agentes assassinos alegam legítima defesa (?!); Bento António Gonçalves, secretário-geral do P. C. P. Morre no Tarrafal; Damásio Martins Pereira, fragateiro, morre no Tarrafal; Fernando Óscar Gaspar, morre tuberculoso no regresso da deportação; António de Jesus Branco morre no Tarrafal;
1943, Rosa Morgado, camponesa do Ameal (Águeda), e os seus filhos, António, Júlio e Constantina, são mortos a tiro pela GNR; Paulo José Dias morre tuberculoso no Tarrafal; Joaquim Montes morre no Tarrafal com febre biliosa; José Manuel Alves dos Reis morre no Tarrafal; Américo Lourenço Nunes, operário, morre em consequência de espancamento perpetrado durante a repressão da greve de Agosto na região de Lisboa; Francisco do Nascimento Gomes, do Porto, morre no Tarrafal; Francisco dos Reis Gomes, operário da Carris do Porto, é morto durante a tortura;
1944, general José Garcia Godinho morre no Forte da Trafaria, por lhe ser recusado internamento hospitalar; Francisco Ferreira Marques, de Lisboa, militante do PCP, em consequência de espancamento e após mês e meio de incomunicabilidade; Edmundo Gonçalves morre tuberculoso no Tarrafal; assassinados a tiro de metralhadora uma mulher e uma criança, durante a repressão da GNR sobre os camponeses rendeiros da herdade da Goucha (Benavente), mais 40 camponeses são feridos a tiro.
1945, Manuel Augusto da Costa morre no Tarrafal; Germano Vidigal, operário, assassinado com esmagamento dos testículos, depois de três dias de tortura no posto da GNR de Montemor-o-Novo; Alfredo Dinis (Alex), operário e dirigente do PCP, é assassinado a tiro na estrada de Bucelas; José António Companheiro, operário, de Borba, morre de tuberculose em consequência dos maus tratos na prisão;
1946, Manuel Simões Júnior, operário corticeiro, morre de tuberculose após doze anos de prisão e de deportação; Joaquim Correia, operário litógrafo do Porto, é morto por espancamento após quinze meses de prisão;
1947, José Patuleia, assalariado rural de Vila Viçosa, morre durante a tortura na sede da PIDE;
1948, António Lopes de Almeida, operário da Marinha Grande, é morto durante a tortura; Artur de Oliveira morre no Tarrafal; Joaquim Marreiros, marinheiro da Armada, morre no Tarrafal após doze anos de deportação; António Guerra, operário da Marinha Grande, preso desde 18 de Janeiro de 1934, morre quase cego e após doença prolongada;
1950, Militão Bessa Ribeiro, operário e dirigente do PCP, morre na Penitenciária de Lisboa, durante uma greve de fome e após nove meses de incomunicabilidade; José Moreira, operário, assassinado na tortura na sede da PIDE, dois dias após a prisão, o corpo é lançado por uma janela do quarto andar para simular suicídio; Venceslau Ferreira morre em Lisboa após tortura; Alfredo Dias Lima, assalariado rural, é assassinado a tiro pela GNR durante uma manifestação em Alpiarça;
1951, Gervásio da Costa, operário de Fafe, morre vítima de maus tratos na prisão;
1954, Catarina Eufémia, assalariada rural, assassinada a tiro em Baleizão, durante uma greve, grávida e com uma filha nos braços;
1957, Joaquim Lemos Oliveira, barbeiro de Fafe, morre na sede da PIDE no Porto após quinze dias de tortura; Manuel da Silva Júnior, de Viana do Castelo, é morto durante a tortura na sede da PIDE no Porto, sendo o corpo, irreconhecível, enterrado às escondidas num cemitério do Porto; José Centeio, assalariado rural de Alpiarça, é assassinado pela PIDE;
1958, José Adelino dos Santos, assalariado rural, é assassinado a tiro pela GNR, durante uma manifestação em Montemor-o-Novo, vários outros trabalhadores são feridos a tiro; Raul Alves, operário da Póvoa de Santa Iria, após quinze dias de tortura, é lançado por uma janela do quarto andar da sede da PIDE, à sua morte assiste a esposa do embaixador do Brasil;
1961, Cândido Martins Capilé, operário corticeiro, é assassinado a tiro pela GNR durante uma manifestação em Almada; José Dias Coelho, escultor e militante do PCP, é assassinado à queima-roupa numa rua de Lisboa;
1962, António Graciano Adângio e Francisco Madeira, mineiros em Aljustrel, são assassinados a tiro pela GNR; Estêvão Giro, operário de Alcochete, é assassinado a tiro pela PSP durante a manifestação do 1º de Maio em Lisboa;
1963, Agostinho Fineza, operário tipógrafo do Funchal, é assassinado pela PSP, sob a indicação da PIDE, durante uma manifestação em Lisboa;
1964, Francisco Brito, desertor da guerra colonial, é assassinado em Loulé pela GNR; David Almeida Reis, trabalhador, é assassinado por agentes da PIDE durante uma manifestação em Lisboa;
1965, general Humberto Delgado e a sua secretária Arajaryr Campos são assassinados a tiro em Vila Nueva del Fresno (Espanha), os assassinos são o inspector da PIDE Rosa Casaco e o subinspector Agostinho Tienza e o agente Casimiro Monteiro;
1967, Manuel Agostinho Góis, trabalhador agrícola de Cuba, morre vítima de tortura na PIDE;
1968, Luís António Firmino, trabalhador de Montemor, morre em Caxias, vítima de maus tratos; Herculano Augusto, trabalhador rural, é morto à pancada no posto da PSP de Lamego por condenar publicamente a guerra colonial; Daniel Teixeira, estudante, morre no Forte de Caxias, em situação de incomunicabilidade, depois de agonizar durante uma noite sem assistência;
1969, Eduardo Mondlane, dirigente da Frelimo, é assassinado através de um atentado organizado pela PIDE;
1972, José António Leitão Ribeiro Santos, estudante de Direito em Lisboa e militante do MRPP, é assassinado a tiro durante uma reunião de apoio à luta do povo vietnamita e contra a repressão, o seu assassino, o agente da PIDE Coelha da Rocha, viria a escapar-se na "fuga-libertação" de Alcoentre, em Junho de 1975;
1973, Amilcar Cabral, dirigente da luta de libertação da Guiné e Cabo Verde, é assassinado por um bando mercenário a soldo da PIDE, chefiado por Alpoim Galvão;
1974, (dia 25 de Abril), Fernando Carvalho Gesteira, de Montalegre, José James Barneto, de Vendas Novas, Fernando Barreiros dos Reis, soldado de Lisboa, e José Guilherme Rego Arruda, estudante dos Açores, são assassinados a tiro pelos pides acoitados na sua sede na Rua António Maria Cardoso, são ainda feridas duas dezenas de pessoas.
A PIDE acaba como começou, assassinando. Aqui não ficam contabilizadas as inúmeras vítimas anónimas da PIDE, GNR e PSP em outros locais de repressão. Mas ainda podemos referir, duas centenas de homens, mulheres e crianças massacradas a tiro de canhão durante o bombardeamento da cidade do Porto, ordenada pelo coronel Passos e Sousa, na repressão da revolta de 3 de Fevereiro de 1927. Dezenas de mortos na repressão da revolta de 7 de Fevereiro de 1927 em Lisboa, vários deles assassinados por um pelotão de fuzilamento, à ordens do capitão Jorge Botelho Moniz, no Jardim Zoológico. Dezenas de mortos na repressão da revolta da Madeira, em Abril de 1931, ou outras tantas dezenas na repressão da revolta de 26 de Agosto de 1931. Um número indeterminado de mortos na deportação na Guiné, Timor, Angra e no Cunene. Um número indeterminado de mortos devido à intervenção da força fascista dos "Viriatos" na guerra civil de Espanha e a entrega de fugitivos aos pelotões de fuzilamento franquistas. Dezenas de mortos em São Tomé, na repressão ordenada pelo governador Carlos Gorgulho sobre os trabalhadores que recusaram o trabalho forçado, em Fevereiro de 1953. Muitos milhares de mortos durante as guerras coloniais, vítimas do Exército, da PIDE, da OPVDC, dos "Flechas", etc. .

É longo. Mas também longa foi a "noite" em estivemos mergulhados e de novo ameaça!

O que queremos branquear?

Que saudades ou nostalgias poderá um POVO ter de semelhante regime?

Jerónimo Sardinha
15Jan10

6 comentários:

Marília Gonçalves disse...

Estimado Companheiro
acabo de ler esta sua página do HORROR FASCISTA em Portugal
fiquei tão comovida que neste instante me sinto incapaz de redigir o que quer que seja
Voltarei amanhã com algo que me foi confiado por minha tia e que se passou na clandestinidade. infelizmente minha tia já não é deste Mundo, mas deixou-me em herança
momentos terríveis e inesquecíveis, para serem contados e que a memória perdure!
Para que não torne a ser e o povo se Levante consciente!
Minha tia era a viûva Alex,
"Há 60 anos a PIDE assassinou Alfredo Dinis (Alex)
dia 4 de Julho de 1945, na solitária estrada de Bucelas"

http://www.dorl.pcp.pt
/index.php?option=com_content&task=view&id=231&Itemid=108

quero apenas deixar meu fraterno abraço a todos os que passaram pelas mãos da famigerada PIDE, Extensivo a suas famílias, eu que bem sei o que isso é como filha de preso político que sou
até amanhã com o meu abraço
Marília Gonçalves

andrade da silva disse...

Caro Jeronimo

É importante ter memória, dá-la a conhecer quando se mata a república, como acabo de o referir num apelo que redigi a alguns republicanos e que aqui postarei.

Todavia perante este memorial senti a mesma dor,raiva e impotência que há tempos vivi quando em Belmonte visitei o museu judeu e vi as vitimas da inquisição, entre as quais rapazes de 18 anos. Quantos destes mártires que referes ainda não seriam jovens, e por falar de jovens o pós 25 de Novembro 75, em 1979, foram executados no Escoural dois trabalhadores agricolas um de dezasssete anos, mas qual o seu crime? E porque nunca foram julgados os criminosos, e porque se cala este crime, agora referido em verso num livro publicado pelas edições avante de filipe chinita: " cantata pranto e louvor em memória de Casquinha e Caravela", de que pretendo publicar um apontamento. Todavia o tempo voa e os acontecimentos são tantos...

abraço fraterno
asilva

Marília Gonçalves disse...

Companheiros, Amigos, Leitores

Aqui estou para cumprir o que deixei dito a noite passada.
Estavam meus tios na clandestinidade e tinham com eles um filho de menos de três anos. Esse menino era muito doente, doença grave e incurável!
A mãe, era com o filho o que regra geral são as mães, extremosa e incansável, o pai de tais e extremos cuidados que a ninguém confiava o seu filho/tesouro, sou obrigada a contar que meu tio era um homem de uma ternura sem fim, que nunca passava por sua mulher sem a beijar... assim os cuidados com o filho que adorava nada têm de estranho, estava no seu carácter! Era um homem bom, atencioso e terno, como o são quase sempre os revolucionários, tanto mais que no intimo não sabem o tempo de que dispõe para apreciar o que a vida tem de bom!
Mas um terrível dia em consequência da doença, o menino morreu!Quem tem filhos, mesmo se nunca perdeu nenhum sabe no mais profundo de si o horror que isso é, para todo o sempre!
Ora como disse eles estavam na clandestinidade, com identidades criadas para o fim, e claro estavam com mais companheiros.
Ora a morte de uma criança obriga a vinda de médico a casa para constatar o óbito, naquele caso preciso seria pôr em perigo todos os que viviam naquela casa; seria poder ser descoberto. A morte atrai vizinhos, atrai curiosos do facto e por mais bem intencionados que sejam, nunca se sabe quem se encontra entre eles.
Pois por esse motivo ultrapassando heroicamente dor e desespero, minha tia embrulhou o filho morto no xaile e foi em busca dum táxi com o filho ao colo. Táxi que apanhou, pedindo ao taxista, sempre agindo como se o filho estivesse a dormir, que a levasse a Lisboa, dando pata isso a morada de minha avó materna. E toda a viagem foi feita ocultando a dor, a aflição em que ia!
Quando chegou a casa da irmã, minha avó, foi a sogra desta que veio abrir. Ao ver minha tia com o menino ao colo e enrolado no xaile, disse fechando a porta: espere um minutinho vou fechar a janela está corrente de ar para a criança. Se o puderem coloquem.se no lugar da mãe, o filho morto nos braços e do espanto e horror da pessoa que tão bem intencionada tinha ido fechar a janela!
Povo de Portugal! isto são retratos do tempo do fascismo, retratos dos que se batiam pelos teus Direitos, pela tua Liberdade? Enquanto tu fingias que não vias e que nada te dizia respeito!
Como pode alguém em Portugal, alguém com sentimentos e consciência ter saudades de tal horror!
Ergam-se antes num minuto de silêncio,em respeito dos que tudo deram por vôs!
Seis meses depois da morte do filho, cujo funeral partiu de casa de minha avó, Alfredo Dinis o Alex era assassinado pela PIDE

Até Sempre
Marília Gonçalves

Marília Gonçalves disse...

Na primeira visita em comum que tive com a família, sob a vigilância dum chefe de brigada e de um agente, além do guarda prisional, consegui passar disfarçadamente lá para fora um pequeno poema escrito numa mortalha de cigarro.

ISTMO

Um preso político é como uma península:
rodeado de lobos por todos os lados
menos por um – a certeza
que o liga aos companheiros.
(Prisão de Caxias, Outubro de 1972)

Carlos Domingos

Marília Gonçalves disse...

De todas as torturas a que fui submetido pela PIDE, a mais terrível foi a tortura do sono, que consistia em privar o preso de dormir dias seguidos para lhe quebrar a resistência, tanto física como moral.

NO 13º DIA DA TORTURA DO SONO

Esta manhã o Sol,
vermelho de vergonha,
veio espreitar se ainda vivo.

Sinto-me num barco que se afunda.
Só eu flutuo
à deriva num mar encapelado,
as tábuas unidas por um fio inquebrável,
jangada varrida por chicotadas de tormenta
com agressões de rochedos a doer nos ossos.

Desço ao fundo de mim. Ao menos
aqui encontro segurança.
À minha volta os monstros investem
mas só por fora a carne sangra.

Recosto-me
num monte de recordações
que as vertigens não deixam ordenar.
Ah! Bem desejam os monstros apreendê-las
e por isso espreitam desesperadamente
através dos meus olhos.
Mas, entretanto, eu desliguei a lâmpada
que dava luz cá dentro.

Estou suspenso de mim. Acho que vou cair.
Mas não. As paredes é que rodopiam
e abrem-se agora à passagem de figuras brancas,
monstros de cal, corpos recortados.
Quem são, quem são? Ah, não apertem
pois quero respirar.
Que ouvidos são aqueles pendurados no tecto?
Como conseguiram entrar na minha cabeça
e escavar, escavar... ?
Rio-me, pois nada encontrarão
a não ser uma ampulheta marcando o tempo,
cada vez mais difuso.
Rio-me, sim, com um riso de sangue em brasa.




Eles tentam isolar-me cortando as amarras,
quebrando as antenas,
destruindo a bússola.
Mas eu continuo a orientar-me
rompendo o nevoeiro do seu ódio.


O meu pensamento é uma escada em caracol
a que faltam degraus.
Ontem à noite escorreguei
e quase mergulhei no sono universal.
Mas hoje, com o render da noite,
senti-me vivo e gostei.


Amo a vida, o amor, a liberdade.
E é por isso que morro pela vida,
odeio pelo amor
e pela liberdade estou cativo.


Soltam à minha volta palavras-mastins
que ladram e abocanham:
“Diz!”, “Declara!”, “Fala e vais dormir!”
(sons para mim sem nexo).
Ó monstros pobres diabos!
Nem sequer se apercebem que não podem
vergar esta barra
dura como a vontade.


Deixei-me cair em indiferença de algodão.
Desisti de fazer o puzzle que trago nos olhos.
Sons e imagens, podeis vogar, sois livres,
podeis confundir-vos, bailar.
Gargalhadas na parede, ameaças,
olhos a passear pelo chão,
bichos repelentes, répteis,
hálito podre de polícias suados,
mãos na garganta, lápis
a rolar sobre a mesa como um bulldozer,
tudo isto está prensado
nesta muralha de ódio à minha volta.

Dentro de mim está a vida.
Dentro de mim trago os companheiros que se agitam,
dentro de mim trago os povos que fervilham,
povos que recusam a vala comum
e reconstroem o Sol.
Dentro de mim está o amor
que se transmite em ondas de confiança.
Dentro de mim
há um carregamento de certezas
implacáveis.

É por isso que o meu sorriso
é uma arma de agressão
que transforma o ódio em desespero.
Dentro de mim, bem no fundo de mim,
é que está a passagem para a liberdade.

Mas só eu tenho a chave do alçapão.

( Prisão de Caxias, Outubro de 1972)

Finalmente, perante a inutilidade das torturas, enfiaram-me numa cela onde estive isolado três meses.

Carlos Domingos

Marília Gonçalves disse...

AGITAÇÃO



Vai uma grande agitação no mar.
Os pombos, as gaivotas,
as andorinhas de novo a regressar.

Os guardas escorregam, nervosos.
Já encerraram as caras e os gradões,
caem, prostradas, no chão as ameaças.

Eia, juntemo-nos, ombro com ombro,
para o bem e para o mal,
nós e o mar.

Lá fora soam vozearias
(serão gritos ou canções?)
É bom estarmos preparados.



(Prisão do Forte de Peniche, 25 de Abril de 1974) Carlos Domingos