sexta-feira, 8 de outubro de 2010

em Intenção de Andrade da Silva


Poema Cansado de Certos Momentos
Foi-se tudo
como areia fina escoada pelos dedos.
Mãe! aqui me tens,
metade de mim,
sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens,
de gestos saqueados,
onde resta a saudade de ti
e do teu mundo de medos.
Meus braços, vê-os, estão gastos
de pedir luz
e de roubar distâncias.
Meus braços
cruzados
em cruz de calvário dos meus degredos.
Ai que isto de correr pela vida,
dissipando a riqueza que me deste,
de levar em cada beijo
a pureza que pariste e embalaste,
ai, mãe, só um louco ou um Messias
estendendo a face de justo

para os homens cuspirem o fel das veias,
só um louco, ou um poeta ou um Cristo
poderá beijar as rosas que os espinhos sangram
e, embora rasgado, beber o perfume
e continuar cantando.
Mãe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
pela flor menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e não olhaste os pegos nem as cobras,
verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
De mão nua, entregaste-me ao destino.
Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
E sem elmos ou gibões,
nem lutei nem vivi:
fiquei quieto, absorto, em lágrimas
— e lá ao fundo esperavam-me valados
e chacais rancorosos.

Mãe! aqui me tens,
restos de mim.
Guarda-me contigo agora,
que és tu a minha justiça e o exílio
do perdido e do achado.
Guarda-me contigo agora
e adormece-me as feridas
com as guitarras do fado.

Mas caberá no teu regaço
o fantasma do perdido?

Fernando Namora, in "Mar de Sargaços"

6 comentários:

Marília Gonçalves disse...

Tenho Saudades do Calor ó Mãe

Tenho saudades do calor ó mãe que me penteias
Ó mãe que me cortas o cabelo — o meu cabelo
Adorna-te muito mais do que os anéis

Dá-me um pouco do teu corpo como herança
Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho —
O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus
Dá-me o pão do céu porque morro
Faminto, morro à míngua do alto

Tenho saudades dos caminhos quando me deixas
Em casa. Padeço tanto
Penso tanto
Canto tão alto quando calculo os corpos celestes

Ó infinita ó infinita mãe

Daniel Faria, in "Dos Líquidos"

Anónimo disse...

É Noite, Mãe

As folhas já começam a cobrir
o bosque, mãe, do teu outono puro...
São tantas as palavras deste amor
que presas os meus lábios retiveram
pra colocar na tua face, mãe!...

Continuamente o bosque se define
em lividez de pântanos agora,
e aviva sempre mais as desprendidas
folhas que tornam minha dor maior.
No chão do sangue que me deste, humilde
e triste, as beijo. Um dia pra contigo
terei sido cruel: a minha boca,
em cada latejar do vento pelos ramos,
procura, seca, o teu perdão imenso...

É noite, mãe: aguardo, olhos fechados,
que uma qualquer manhã me ressuscite!...

António Salvado, in "Difícil Passagem"

andrade da silva disse...

Obrigado Marilia e leitor anónimo

Que hinos às nossas mães. Obrigado pela minha que resiste, mas morre todos os dias, à espera do desfecho, da sua vida meramente vegetativa.

Conforta-nos julgar que não sofre nem fisica, nem psicologicamente porque o que a mantém prostrada é um AVC que lhe induziu um estado de coma profundo e irreversível, há meses.

abraços
asilva

Marília Gonçalves disse...

Força e Coragem Companheiro, o momento que vive com suas irmãs e de pesadelo, apenas o tempo nos ensina a viver com essa dor que apesar de nunca terminar, nos deixa viver anos apôs ternamente a saudade insuperável,
sei do que falo, e os meus que se foram continuam presentes no amor, no respeito pelo ser humano, todos os valores que me transmitiram e pela imensa ternura que me deram! e contra isso a morte nada pode!
o meu abraço para si e suas irmãs
Marília

Anónimo disse...

da Elegia da Vida
João de Deus

A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai;
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave;
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou.
A vida - pena caída
Da asa de ave ferida -
De vale em vale impelida
A vida o vento a levou

Isaura disse...

João desejo a todos vós força e coragem para este momento difícil. Também já passei por isso, infelizmente. Um grande abraço para ti e para as tuas irmãs.
.............................

(Escrito em 1964 quando a PIDE prendeu, toturou e manteve presa durante 3 anos a minha mãe)

PARA A MINHA MÃE

Minha Mãe
Amiga querida
que me guiaste na vida
Lembro-me tanto de ti
do muito que agora sofres
Sem os teus "meninos"
como às vezes, a brincar,
ainda nos chamavas
Sem a luz quente do sol
que eu sei que tu adoravas
Sem liberdade e sem lar
no meio da tempestade
tu saberás encontrar
o caminho da verdade
Eu sei que serás capaz
de vencer a força bruta
que nos rouba o pão, a paz
que o nosso viver enluta
Muita coragem mãezinha
de cabeça sempre erguida
Tu nunca estarás sozinha
companheira
e Mãe querida.
(1964)