segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

NO 13º DIA DA TORTURA DO SONO


De todas as torturas a que fui submetido pela PIDE, a mais terrível foi a tortura do sono, que
consistia em privar o preso de dormir dias seguidos para lhe quebrar a resistência, tanto física como
moral.


NO 13º DIA DA TORTURA DO SONO

Esta manhã o Sol,
vermelho de vergonha,
veio espreitar se ainda vivo.

Sinto-me num barco que se afunda.
Só eu flutuo
à deriva num mar encapelado,
as tábuas unidas por um fio inquebrável,
jangada varrida por chicotadas de tormenta
com agressões de rochedos a doer nos ossos.

Desço ao fundo de mim. Ao menos
aqui encontro segurança.
À minha volta os monstros investem
mas só por fora a carne sangra.

Recosto-me
num monte de recordações
que as vertigens não deixam ordenar.
Ah! Bem desejam os monstros apreendê-las
e por isso espreitam desesperadamente
através dos meus olhos.
Mas, entretanto, eu desliguei a lâmpada
que dava luz cá dentro.

Estou suspenso de mim. Acho que vou cair.
Mas não. As paredes é que rodopiam
e abrem-se agora à passagem de figuras brancas,
monstros de cal, corpos recortados.
Quem são, quem são? Ah, não apertem
pois quero respirar.
Que ouvidos são aqueles pendurados no tecto?
Como conseguiram entrar na minha cabeça
e escavar, escavar... ?
Rio-me, pois nada encontrarão
a não ser uma ampulheta marcando o tempo,
cada vez mais difuso.
Rio-me, sim, com um riso de sangue em brasa.

Dentro de mim está a vida.
Dentro de mim trago os companheiros que se agitam,
dentro de mim trago os povos que fervilham,
povos que recusam a vala comum
e reconstroem o Sol.
Dentro de mim está o amor
que se transmite em ondas de confiança.
Dentro de mim
há um carregamento de certezas
implacáveis.

É por isso que o meu sorriso
é uma arma de agressão
que transforma o ódio em desespero.
Dentro de mim, bem no fundo de mim,
é que está a passagem para a liberdade.

Mas só eu tenho a chave do alçapão.

( Prisão de Caxias, Outubro de 1972)

Carlos Domingos

2 comentários:

andrade da silva disse...

Domingos
um abraço solidário e perante tanta dor um grito de silêncio, revolta e indignação por Abril não ter condenado tão hediondos crimes.

Antes de aqui chegar estive a ver um filme sobre os hediondos crimes dos nazis sobre os alemães, mas hoje vinha aqui para escrever sobre a felicidade de três patos e um gato, adio-o para amanhã.

Deixo também aqui a minha total incompreensão por haver 48% de portugueses que por força da podridão de hoje esquecem esses tempos de crime e tortura.
abraço
asilva

Marília Gonçalves disse...

a minha fraterna amizade Carlos Domingos e o meu repúdio total das feras
Devem-nos um processo que não teve lugar! Isso foi mais um roubo que nos foi feito, a ti que o sofreste na carne e eu que vi sofrer os meus!
foi pena que no que toca o der Justo, Abril ficou incompleto
um grande abraço para ti e para tua família

Marília Gonçalves