domingo, 3 de abril de 2016

CULTURAS DIFERENTES/REFLEXÕES COMUNS: FILÓSOFO NÉSTOR KOHAN E CAPITÃO DE ABRIL ANDRADE DA SILVA ( COMENTÁRIO)

Dor no Escoural 1979,morte de Casquinha jovem com 17 anos;



NOTA: Um magnifico texto de Maria Maurício, ( licenciada em filosofia e autora de várias obras editadas) em que sou citado e, por isto, o meu grande bem- haja, e um voto sincero leiam-no. Ganharão não pelo que digo, mas, sobretudo, pelo comentário da Maria Maurício.

1. Explicação prévia

Nos tempos que correm, a informação e os meios para divulgá-la são múltiplos e diversificados e, quase me atrevo a dizer, que não há tema ou assunto que não se encontre disseminado pelos mais variados canais. Por estes dias de final de Março, encontrei dois artigos que me surpreenderam pela similitude de pontos de vista, apesar das diferenças de formação científica dos autores, da distância geográfica que os separa, dos contextos históricos e culturais em que estão inseridos, das diferentes experiências pessoais que a vida lhes proporcionou.

Refiro-me ao Filósofo argentino Néstor Kohan e ao Capitão de Abril Andrade da Silva, também com licenciatura em Sociologia e em Psicologia.

Um, professor de Filosofia, domina o conhecimento teórico dos pensadores de todos os tempos, é, também, um cidadão comprometido com as lutas dos povos da América Latina e analisa o percurso histórico dessas lutas à luz da perspectiva materialista da história. Outro, militar, oficial superior do Exército Português, andou na Guerra, conspirou contra regime de ditadura e foi um dos Capitães libertadores que fizeram a Revolução de 25 de Abril de 1974. Foi delegado do MFA e esteve ao lado dos trabalhadores agrícolas na construção da Reforma Agrária, sob o comando do MFA.

Quanto ao primeiro, no seu artigo com o título: 49 Anos Depois do Golpe do Gen. Videla Não Perdoar Nem Dar a Outra Face, o filósofo traz à memória esses tempos negros de ditadura militar que mergulhou a sua Argentina numa onde de terror e sofrimento sem precedentes, ao mesmo tempo que analisa a sociedade e o país na actualidade.

Em relação ao Capitão de Abril Andrade da Silva, reporto-me ao seu artigo com o título: Aquela Diferente e Arriscada Páscoa 1972 Mucaba/Angola, onde recorda os tempos de Guerra Colonial, do modo como, na sua qualidade de comandante de companhia, se empenhou por fazer diferente aquele domingo de Páscoa, liturgicamente celebrado como o Dia da ressurreição de Cristo.

Como metodologia de análise, transcrevo algumas passagens do texto de filósofo que me parecem dignas de reflexão universal e, por assim as considerar, encontrei nelas semelhança com algumas partes do texto que o Capitão de Abril publicou em 25 de Março.

2. Diz o filósofo argentino

“… a dificuldade que temos os que pertencem à esquerda vermelha em aceitar que as confrontações sociais se dão, como ensinava Lenine, não entre o povo virgem, bondoso e puro (99% da população) versus o 1% mau, vendido e perverso. Tudo simples e claro, sem cinzentos, contradições nem matizes como nos contos infantis. Não. A luta de classes nos seus níveis mais altos de confronto dá-se entre duas partes do povo. Do outro lado da barricada e da pólvora (ou das ferramentas técnicas) também haverá povo, lamentavelmente dando o peito às balas por um projecto alheio. Foi assim em Espanha, foi assim em El Salvador, foi assim na Colômbia. Foi assim e será assim na Argentina.

Enquanto não aprendermos e não aceitemos, mesmo que com má vontade, que um segmento do nosso povo está largamente trabalhado, pela cultura e as tradições sedimentadas do inimigo, patinaremos no pasto, na neve, no barro, inclusivamente no asfalto. Travar uma batalha por disputar e dividir esse campo é fundamental. A «independência de classe», sozinha e bonita, não chega. É imprescindível, ao mesmo tempo e no mesmo espaço (ou seja na mesma situação histórica) ter um projecto de hegemonia. Mas para o ter há que previamente compreender que a hegemonia se exerce, também, sobre pessoas que não partilham a 100% as nossas ideias. Quem não lute nem dispute esse campo perdeu de antemão. Tem um rei caído e um cheque mate assegurado antes de mexer um simples peão.”

E prossegue…

“Aparelho contra aparelho perdemos, pelo menos agora, e assim foi durante o último meio século ou talvez durante todo o século. Guerra revolucionária que não seja levada a cabo pelo povo como protagonista central está inexoravelmente derrotada (escreveu Giap, sublinhou-o Guevara, demonstrou-o a história). Quando se limitam a confrontação exclusiva dos aparelhos, essas derrotas populares envolvem centralmente as instituições de inteligência e contra-inteligência, onde o Estado burguês costuma ser mais poderoso…

…” O desafio é a longo prazo, com paciência, com tenacidade e com o povo. Sem nunca dar a outra face… sem esquecer, sem renegar, sem perdoar. Estou absolutamente convencido que nenhuma luta foi em vão. Alguma vez, até o mínimo gesto de resistência, hoje «esquecido», insultado, vilipendiado recuperará o seu sentido…”

3. Diz o Capitão de Abril

O artigo remete-nos ao teatro de guerra, em Mucaba/Angola, 1972, onde o então Alferes Andrade da Silva e a sua companhia comemoram o domingo de Páscoa, longe dos seus familiares e amigos, mas em fraterna camaradagem e união, “esquecendo” os dramas quotidianos e procurando viver um dia diferente. 44 Anos depois, o nosso Capitão de Abril faz uma reflexão sobre esse passado e compara-os com os dias de hoje, constatando como não só mudaram os tempos como as vontades dos homens e mulheres, que procuram passar uma esponja sobre a história e, cobardemente, renderam-se aos que antes combatiam, ao mesmo tempo que denuncia os que voltaram as costas ao projecto de Abril e ao sonho de construir uma sociedade mais justa. Por fim questiona:

“Mas será mesmo que tenho de pedir o grande favor de me lerem e de fazerem o favor de dizerem a outros para me lerem, quando relato factos da nossa história esquecidos e apresento ideias alternativas ao pensamento dominante que nunca nos libertou da cercadura, onde vegetam os escravos dominados e pisados por umas centenas de milhar de agulheiros e meia dúzia de todos poderosos totalitários que usam a política como mero instrumento de manutenção dos escravos repartidos por várias tribos?
Mas, se for preciso, não o pedirei.”

4. Comentário

Encontro alguma similitude entre os dois textos, ou melhor, entre os dois pensamentos. O texto do Capitão de Abril recorda-me a imagem do moscardo nos ditos filosóficos que Sócrates (o filósofo ateniense que foi acusado pelo poder dominante de andar a corromper a juventude e condenado à morte) dirigia à juventude de Atenas, comparando-os à picada do bicharoco para os despertar do adormecimento mental em que permaneciam.

No tempo presente, verificamos uma espécie de “amnésia colectiva”na maioria das pessoas que estão completamente alienada pelo pensamento e pela cultura dominante, não reagindo perante os problemas e os perigos políticos, sociais, económicos e culturais que nos espreitam em cada esquina. Infelizmente, somos muito poucos os que estamos em vigília permanente…

Termina o seu escrito em tom de brado: “Levantem-se, Ergam-se e Lutem!” Algumas pessoas ouvirão este clamor. Há mulheres e homens que não se dobram, que não dão a outra face, que não esquecem e que não perdoam…

O filósofo Néstor Kohan refere-se, às dificuldades em combater a influência que cultura dominante exerce na maioria das pessoas e à ausência de acção concreta da parte dos agentes esclarecedores, salientando que não basta constatar o problema, é preciso ter discernimento e separar o trigo do joio, esclarecer, fazer o “trabalho do moscardo” junto do povo. Não é fácil e, infelizmente, a desorientação e a ausência de estratégia de união por parte da esquerda revolucionária para combater o inimigo comum é visível. A ausência de hegemonia e de liderança alternativa às políticas neoliberais é fatal…

Do outro lado do Atlântico, um teórico das Revoluções, professor de Filosofia, qual moscardo dos “tempos modernos” de lutas pela liberdade, num dos locais do mundo onde, ainda, há muito para libertar, põe “o dedo na ferida”: “Guerra revolucionária que não seja levada a cabo pelo povo como protagonista central está inexoravelmente derrotada”. Que o diga o nosso Capitão de Abril quando, nos campos do Alentejo, andou ao lado do povo a fazer a Revolução. Sim, a Revolução que transformou o Alentejo e o modo de vida das suas gentes como nunca conheceram antes…

Teoria e prática aqui se espelham em reflexões que nos questionam e que nos mostram como na vida e na luta, o diálogo entre culturas distintas e experiências diferentes, podem permitir o encontro de pontos comuns e estabelecer plataformas de acção conjunta, assim como partilha de conhecimentos e de reflexão mútua que enriquecem as relações entre os seres humanos.
Mas, para isso, ninguém deve dizer “isto não é nada comigo…” O que se está a passar é assunto de todos nós e de cada um e no seu posto de combate deve estar presente. Eu estou: leio quem tem muito para dizer e com quem sempre se aprende mais; intervenho na polis e faço, modestamente, o meu “trabalho de moscardo”.

Março de 2016
Maria José Maurício

Fontes:
Liberdadeecidadania.blogspot.com/


ALGUNS ELEMENTOS BIOGRÁFICOS E CURRICULARES
DE MARIA JOSÉ MAURÍCIO
Maria José Maurício nasceu em Setúbal em 1950. Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e concluiu o mestrado “Estudos sobre as Mulheres”, na Universidade Aberta em Lisboa.
Entre outras actividades, foi professora do ensino secundário e, actualmente, é consultora e formadora no domínio da Educação para a Cidadania, Igualdade de Género e Relações Humanas.
Tem diversas obras e trabalho publicados, nomeadamente:
2001 - Co-autora do livro “Pensar no Feminino”, organização de Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, publicado pela editora Colibri, o ensaio:
- “A Feitiçaria e o Feminino nos Séculos XV a VXII”.
2005 – Foi publicada a sua tese de mestrado, pela Editorial Caminho, Com o título:
“Mulheres e Cidadania: Alguns perfis e Acção Política (1949-1973)”.
2006 - Concebeu e realizou diversos programas pedagógicos na área da Igualdade entre Mulheres e Homens, publicados pela CGTP-IN, em parceria com a Federação dos Sindicatos dos Professores, a Escola Profissional Bento de Jesus Caraça e a CITE- Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. entre outras instituições:
2008 - Co-autora da publicação da responsabilidade CGTP-IN em parceria com a Federação dos Sindicatos dos Professores, A Secretaria Regional de Educação e Cultura da Madeira e Secretaria Regional de Educação e Ciência dos Açores, com o título:
- “Guia Prático: Aplicação da Metodologia – Agir para a Igualdade” Igualdade entre Mulheres e Homens nas Escolas.
2009 - Autora da seguinte publicação sob a responsabilidade da Associação Mais Igualdade, Viseu:
- “Construir a Igualdade, Formar para a Cidadania – Unidade Didáctica”.
2013/2014 - Integrou o Grupo de Trabalho para a publicação do livro, sob a responsabilidade da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses /CGTP-IN, Lisboa, com o título:
- “CGTP-IN: 43 Anos A Construir a Igualdade Entre Mulheres e Homens (1970-2013).
2015 – Autora do livro, com prefácio do Capitão de Abril Andrade da Silva, publicado pela editora Colibri, com o título:
- “Memória e Vida em Tempos de Abril - Estórias de Liberdade e de Libertação”.
E ainda Autora de vários artigos sobre a questão da luta e emancipação da mulher em revistas como a Vértice, Seara Nova etc.

VIVER ABRIL HOJE (VAH)> CONSTRUIR O FUTURO.


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