sábado, 14 de fevereiro de 2009

















Carta que lhe Escrevi faz tempo, mas que não faz mal relembrar... A memória é pertença colectiva
e a sua maior utilidade é evitar a repetição de males futuros, porque do cofre das lebranças sacamos a aprendizagem
colhida no que vivemos
anteriormente e de que nunca mais
queremos a repetição.

Marília




Caríssimo Companheiro de Abril Andrade e Silva

Dirijo-me em especial a si, porque foi magoado após o 25 de Abril

Que isso possa ter acontecido a um dos Homens da Liberdade dos que nos ofertaram a Luz há tanto negada, que nos deram a possibilidade de beber Ar de o sorver, como nunca dantes havíamos feito, parece-me de tal modo absurdo e ridículo, tão ingrato como falto do mais elementar sentido humano para quem tal fez

Mas como no outro dia referi numa resposta a si também

O 25 de Abril foi decerto a mais bela página de História que se escreveu em Portugal e até no Mundo
Uma Revolução em que quem detinha as armas tudo fez para nunca ter que servir-se delas!
Mas nem a melhor revolução pode operar milagres, as mentalidades foram parte da herança desse quarenta e oito anos de sofrimento do nosso País.
Por isso pelo vosso humanismo exemplar é o meu coração de menina que foi magoado também e prematuramente que vos diz Obrigada!

Por isso que mais uma vez vou escrever aqui mais um pedacinho de acontecimentos da minha vida de menina filha de antifascista ;
O meu pai pertencia ao MUD. Se é certo que as simpatias políticas eram vermelho vivo
era esse o Movimento a que estava ligado.
Meu pai foi preso a 22 de Maio de 1958. Lembro-me de tudo como se fosse hoje e se não esqueci a data, é que na véspera 21 por conseguinte , tinha sido o aniversário de meu pai.
De manhã nesse dia 22 fui para o Externato que frequentava . Vivíamos na Amadora
Do que na classe se passou nessa manha não me lembro de nada de especial porque não havia razão para isso. Uma manhã em que a vida decorria como em todas as outras manhãs e tardes escolares.
À hora de almoço fui a casa para cerca das 14 horas entrar nas aulas outra vez.
Quando cheguei a casa , eu tinha então dez anos, minha mãe veio abrir-me a porta.
Nada havia na expressão de minha mãe que me alertasse para o que quer que fosse.
Foi por isso com espanto que ao ir entrando corredor adiante, comecei a ver a casa virada dos pés para a cabeça, tudo entornado no chão! Tudo fora do sítio habitual. Gavetas fora dos móveis roupas por todo o lado Dirigi-me à cozinha. O mesmo espanto! Tudo revirado e até a despensa tinha as prateleiras esvaziadas. Tudo, tudo espalhado por todo o lado
Enquanto fui observando aquele estado de coisas não me lembro de mais uma vez ter notado algo de estranho no rosto de minha mãe. Mas as palavras que o espanto havia retido, acabaram por sair em forma de pergunta. O que é que aconteceu? E minha mãe o mais naturalmente do mundo respondeu-me:
- Nada! Foi o papá que teve que teve que ir para o Porto de repente e não sabia de umas coisas importantes que tinha que levar e com a pressa foi isto que deu.
- Lembro-me de um mutismo que me tomou, crédula mas estranha. Eu era uma criança sensível que já dizia poesia há alguns anos e em vários sítios. A própria directora do externato que era uma pessoa extraordinária de rectidão e justiça que fazia desabelhar as crianças assim que aparecia pela sua expressão que podia à primeira vista parecer dura, me chamava quando havia algum momento livre para ir declamar para ela. E quanto mais o poema apelasse para sentimentos humanos mais ela exultava. Pois mesmo essa sensibilidade não conseguiu captar senão aquela sensação de espanto que me invadiu.
- É verdade que não muito antes, uma tarde, meu pai chegara a casa com o fato manchado de azul e algo ofegante. Ouvi-o a dizer a minha mãe que na manifestação em Lisboa a guarda republicana lançara os cavalos sobre a multidão e que lhe parecia que umas crianças que iam a passar não teriam ficado bem.
- Mas a conversa não era comigo e nada mais fiquei a saber.
Não percebia patavina de política nessa idade. O que me ensinavam era a proteger os mais fracos, os pobres a gostar das pessoas Mas política, daquilo que pensavam ou faziam até aí nada soube.
Minha avó materna apareceu (para mim inopinadamente e levou-me para casa de familiares onde vivia a sua irmã Josefa, ( a viuva do Alfredo Dinis, mas isso na altura ainda sabia menos, nem que tal pessoa tinha existido. Nessa casa que era a da irmã do Alex, fui recebida com carinho muito mais intenso que o habitual. É possível que bem no fundo de mim começasse a germinar alguma sementinha de ideia, mas sem mais. Uma impressão, uma estranha impressão.
Não voltei à escola até ao fim de semana. No Domingo seguinte minha mãe que estava grávida, tinha mandado fazer um vestido e um casaco comprido rosa velho, parece que o estou a ver...
Disse-me:
- vais ao casamento da prima mas assim que chegares dizes que o papá foi para o Porto e que por conseguinte nem sei se tenho que ir ter com ele, portanto não vou ao casamento, embora tenha muita pena.
É claro que essa minha frase à chegada perto da família tinha a finalidade de os prevenir da minha ignorância dos factos. Assim aconteceu. Acabado o recado fizeram-me um sorriso meigo e nada mais.
Na segunda-feira de manhã, minha mãe completamente tranquila quanto ao meu estado de desconhecimento preparou-me e lá fui para a escola. Externato ou não externato nunca me lembro de dizer senão vou para a escola.
Acabada de sentar na minha carteira, entra a Isabelinha, neta dum amigo de meu pai, e rápida
Lança-me;
Então o teu pai foi preso? De repente num salto estava em pé, e sem hesitar, numa verdade luminosa que não sabia donde me surgia retorqui enérgica:
- Está ! Mas não foi por matar nem roubar! Mas porque é bom!
- Companheiro, nesse momento ergui alto a cabeça e os olhos num jeito que me ficou até hoje e nunca mais em nenhuma circunstância, alguém conseguiu vergar-me a cabeça nem fazer-me baixar os olhos.
E era apenas o início de uma época de provações e de privações que mesmo nesse momento não podia prever. A prisão embora curta, a tortura a perda do emprego que adveio e as suas consequências agravaram a saúde frágil de meu pai!
E tudo a dado momento se fechou à minha frente.
Até que com catorze anos depois de passarmos por muita falta, vim com minha mãe abrir caminho para a vinda de meu pai que começara com vómitos de sangue pouco tempo depois de ser libertado.
À chegada a França em 62 não era já a menina ingénua que chegava
Era uma mulher que a dor es privações haviam amadurecido prematuramente
E deitei-me ao trabalho! Sempre com o mesmo olhar bem erguido!
Mas o que recordo mesmo de casa de mais familiares de casa de meu avô, o tal que era enfermeiro, avô emprestado de segundas “núpcias” de minha avó mas avô de coração era aquela frase que voltava sempre: isto já está por pouco Não tarda cai!
Pois mas os anos foram passando e o fascismo não caía, armado de pedra e cal parecia ser!
Até que foi Abril. (1)
Como duvidar de Abril? Como duvidar do futuro ridente de Portugal! Abril é uma conquista que nunca se perderá! poderá passar e atravessar trilhos tortuosos, mas há-de erguer –se sempre à luz do dia
Porque Abril foi a palavra justa que restituiu a voz a todos os que a dor tinha silenciado
Eu fui apenas uma entre casos e casos sem fim de crianças de quem conheço historias que só muita maldade podiam provocar.
Essa maldade que fechava os olhos ao povo de Portugal era o salazarismo o fascismo de uma hipocrisia ímpar, de falsos sorrisos, de palavras que se fingiam mansas para enganar incautos.
Os outros os que sabiam, e calaram e participaram, mesmo para a consciência própria que durante anos não tiveram, no momento da morte às vezes ela acorda de dedo acusador e não queria estar no lugar deles.
E isso amigos e Companheiros o povo de Portugal há-de sempre, porque é bom generoso e fraterno, vir lembrar a quem tente ofender ou ferir Abril, que Abril é para sempre a Voz da Liberdade a Voz de Portugal!
Até hoje nunca tinha querido escrever estes factos, (salvo em poema que escrevi para crianças da minha rua quando meus filhos eram pequenos).
pensei que a dor que mora nestes acontecimentos me faria estoirar de aflição.
Como vê resisti a esta primeira prova do fogo! Quem sabe talvez um dia venha contar mais alguma página da minha vida infantil
Até sempre Capitães!!!!

Marília Gonçalves

1 comentário:

andrade da silva disse...

CARA MARILIA

Mais do que as ofensas e actos indignos praticados por fascistas e seus sucedaneos contra alguns capitães de Abril o mais grave são as ofensas e as traições ao povo e a Portugal que neste cantinho denunciamos, sem termos o minimo de capacidade que muita mais gente nos oiça,porque quando a tragédia se aproximam até de ouvir se tem medo, sobretudo quando se torna dificil de dizer que quem fala alguma vez traiu o seu ideal ou foi cobarde.
asilva