O 25 de Abril de 1974
à minha volta
Quando em 1974 o amanhecer de Abril trouxe no âmago a mais bela aurora de todos os tempos
o 25 de ABRIL, tinha decorrido um mês repleto de acontecimentos para quem atentamente observasse.
Em Março, havia pois pouco mais de um mês, os militares tinham tentado num golpe de estado mudar o país, tentativa frustrada.
Nos dias que seguiram, eu e meu marido tivemos que ir a Lisboa.
E fomos encontrar uma cidade inquieta, havia um sussurrar, até às lojas, o que nunca tínhamos presenciado anteriormente. Era um murmúrio
de descontentamento geral, numa mercearia perto do Forno do Tijolo em voz baixa mas descontente, mulheres comentavam o aumento do custo de vida e as dificuldades que isso acarretava . Mães preocupadas, que viam levar seus filhos para longe, para a guerra colonial, donde voltavam ou não e quando voltavam, voltavam mudados, doentes ou deficientes.
Mães eternas, que trouxeram filhos nas entranhas olhos fitando o futuro onde o riso dos filhos brilhava juvenil e bom. Que trazer um filho no ventre e pô-lo no mundo é já um grito de confiança na humanidade, nos companheiros de caminho desse menino ainda no presente ao abrigo do seu seio, de seu desvelo e de sua vida. Um Futuro digno para essa vida novinha que crescia em si. O grandioso sonho de qualquer mãe, para seu filho é um Mundo que o mereça.
Mas esse sonho ruia então, para as Mães de Portugal! as mães perdiam seus filhos pela defesa de interesses que nada tinham a ver com os interesses do Povo de Portugal. Perdiam seus filhos, sacrificados tão jovens, meninos quase, para defesa dos interesses duns quantos. Essa certeza do roubo que lhes faziam, era luz definitivamente acesa no coração das Mães! da mãe de cada soldado, de cada oficial.
E com os jovens militares enviados para uma guerra inútil e injusta assassinava-se com eles o futuro de Portugal.
E Portugal nessa década de sessenta, esvaziava-se de suas gentes, aldeias inteiras partiram, os filhos fugindo à guerra, os pais ao infinito cansaço de viver sem esperança, de em troca de trabalho de manhã à noite, verem e viverem em privações e condenados ao silêncio sem sequer o poder dizer.
Nada poderem dizer, nem sobre o sofrimento, nem sobre as suas causas.
O Povo de Portugal condenado, enclausurado dentro de si mesmo, sem poder nunca gritar a sua dor!
Em Março no dia do aniversário de meu marido,juntaram-se em casa amigos que pertenciam como nós ao mesmo grupo da vida Cultural de Faro nessa época.
Nesse dia tinha por conseguinte meu marido recebido um postal de parabéns vindo de meu pai, exilado político em França e que pertencia às forças da Oposição ao regime de Salazar/Caetano, postal em que manifestava seu desejo de que fosse este o último aniversário separados. Estranhei a frase que me soou como um aviso velado. E andou o postal de mão em mão, cada um tentando ler nas poucas palavras e concretização de sua esperança. E acreditámos!
continuou a noite ao som da guitarra que o Zé Maria tocava, enquanto baixinho íamos cantando canções do Zeca!
Assim cada noite ali estávamos os dois meu marido e eu,cabeça quase encostada ao rádio a escutar a BBC, na esperança de que o Presente despertasse em Portugal.
Aguardávamos desde a tentativa de golpe de estado, quer viesse dos militares de novo, ou do povo em geral o sinal de partida para um Portugal novo, onde enfim nos sentíssemos viver.
Esperávamos, como durante cinco décadas esperaram os Resistentes ao fascismo. Muitos caíram pela longa e corajosa estrada da Luta pela Liberdade
e pelo direito à dignidade do Povo português, sem chegar a ver o dia por que tanto haviam lutado e sofrido; como tantos outros que escapando embora à morte nas prisões fascistas, soreram às mãos da PIDE, as mais cruéis e elaboradas formas de tortura.
Prender matar e torturar por uma ideia! Fascistas!
Mas quando nessa manhã se levantava o dia 25, o meu marido saiu de casa e dirigiu-se ao seu trabalho.
Cerca de dez minutos depois em casa tocou o telefone. Não tive tempo para me surpreender ao ouvir a voz de meu marido, com a prontidão de tão matinal chamada. Do outro lado a voz dele perguntou-me: - Sabes o que se passa?
(nessa época no seu emprego, tinham havido grandes lutas sindicais ( era um dos mais fortes sindicatos nesses tempos) e em Lisboa tempo antes, tinham mesmo voado máquinas de escrever pelas janelas lançadas por empregados sobre a polícia fascista de então. Como nas reivindicações constava o aumento de salário; perguntei prosaica e simplesmente: foste aumentado? do outro lado meu marido sorriu. Não! a voz soou mais clara, diferente: está a haver um Golpe de Estado!
Hein? o quê?
(tantos anos depois o meu coração só de o relembrar e escrever salta desenfreado). Tudo o que me passou pelos olhos, os pensamentos que se cruzaram no meu cérebro, são indescritíveis. Tão variados eram! Apenas consegui dizer: vou já para aí!
Vesti meus três filhos e dez minutos depois estávamos na rua.
Olhava a cidade luminosa, como Faro o sabe ser, à minha volta uma manhã de sol, e eu com aquele sol por dentro que me dava asas. Passavam bandos de estudantes, que iam para o liceu, algumas raparigas com as tradicionais batas brancas, iam todos avenida acima a caminho do liceu.
Á Pontinha vinha o Sebastião, colega do mesmo mundo cultural, com uns restos de sono agarrados ainda às pálpebras. Lancei-lhe: Sabes o que se passa? Não, o que é? - Está a haver um Golpe de Estado! - É mesmo?
Confirmei, e vi-o ir na peugada dos alunos, trepando agora a Avenida alegre e bem disposto. Jovem professor, a caminho de um diferente dia de aulas. Completamente diferente!
Quando cheguei ao trabalho de meu marido com as três crianças, todas as empregadas tinham sido dispensadas e voltavam para suas casas. Desciam a escada em tropel com um largo sorriso no rosto.
Ali a única mulher era eu, com três crianças pequenas, uma das quais com um ano.
E foi o dia mais desperto, mais vívido, mais colorido de nossas vidas.
As informações vindas de Lisboa, chegavam das formas mais variadas,
íamos seguindo de longe as grandes passadas da LIBERDADE pelas mãos de jovens oficiais que passaram à Historia com o nome de Capitães de Abril!
Os Homens sem Sono!
Conseguimos, era um bando de gente excitada, captar com um pequeno transístor, mensagens por vezes bastante roufenhas que em Faro ali mesmo ao pé, os militares trocavam entre si. Embora as suas conversas fossem para todos od presentes, impenetráveis, quer porque falassem em código quer porque o transístor não nos deixasse ouvir nitidamente o que diziam, para nós aquelas ordens eram duma clareza infinita. Luminosas palavras, que nos falavam de Liberdade!
Era o momento tão esperado por sucessivas gerações de Lutadores da Resistência em Portugal, e nós ali estávamos, com mais sorte, colhendo enfim esse torvelinho de Luz que tantos resistentes, em tantos anos de persistente combate, tinham merecido ver. Ali estávamos para Honrar suas Gloriosas Memórias! Para nunca os esquecer, reconhecidos!
Depois deixei meus filhos com o pai e fui ver Faro, com olhar novo. Olhar novo e voz solta, fosse qual fosse o preço era preciso pelo menos, falar!
Alguns protestavam, mas poucos, o que mais se via era alegria, e pessoas romperem a barreira do silêncio. O Povo descobria que tinha Voz!
E quando à noite acocorados esperávamos que na TV nos dissessem algo mais, assim ficámos, naquela postura longo tempo e ora nos olhávamos ansiosos por saber mais,ora prendíamos os olhos ao televisor como se um íman ali os retivesse agarrados.
Depois foi o Comunicado do MFA, nome que nos iria acompanhar nos mais veementes e intensos meses de nossas vidas.
E o seu Hino, tempo depois feito canção que andava de boca em boca!
Ali estava o Presente com as portas rasgadas de par em par para o Futuro
e como disse esse grande poeta reconhecido internacionalmente como um dos maiores poetas do Mundo, Ary dos Santos: As Portas que Abril Abriu!
Portas por onde passaram a Liberdade e os Direitos do Povo de Portugal, por onde passou o fim da Guerra Colonial e o reconhecimento do Direito de outros Povos a gerir enfim as Terras, os Países que enfim passavam a ser por lei e direito os seus, por elas entrou a Esperança, o fim do medo, o fim da desconfiança colectiva e por elas entrou a Consciência, a nova Consciência de Ser!
Hoje é essa Consciência que deve manter-se inalterável, para sabermos para sempre defender-nos do terror silenciado pela força, que foi a longa noite fascista!
Para que nunca mais ninguém tenha a tentação de nos mergulhar num tempo que saberemos não deixar voltar.
para que nunca mais se cerrem para nós, para nossos filhos e todos os que estimamos, as Portas do Futuro! As Portas que Abril Abriu!
Marília Gonçalves
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