Para as viagens fazemos malas e levamos bagagens, nesta outra, de descida às memórias lá vamos sempre ao baú das recordações, buscar qualquer coisa que nos parece importante não deixar ficar por dizer, julgo que devo referir que:
Durante 22 anos desempenhei funções da mais elevada responsabilidade nas selecções dos militares do Quadro Permanente, para a Academia Militar (AM) e Escola de Sargentos do Exército (ESE), e com base em conhecimentos da psicologia, mas também na minha própria experiência nunca compreendi que fosse um bom prognóstico para a carreira militar, um jovem apagadíssimo concorrer à Academia ou à ESE.
Pensava e penso, e a vida me tem confirmado, que as escolas de formação militar têm uma certa dificuldade em transformar rapazes apagados, introvertidos, em chefes militares, claro que há excepções, mas considero que um dos critérios de selecção devia ser a história pregressa do jovem de 17/18 anos na sua relação com os outros e o Mundo.
Para além do conhecimento derivado dos estudos da psicologia, teria alguma moral para defender esta perspectiva, e ser muito exigente em relação a ela?
Julgo que sim, porque em 1965, quando falava a outros jovens chefes, alguns sob a minha chefia, abordava temas, como o dos valores, o exemplo e a camaradagem em termos que mais velho, hoje, subscrevo por completo.
Dizia: “ por sermos chefes temos de fazer parte do mundo dos que são nobres, e é aqui que reside a dificuldade, é aqui que nasce a luta. É neste ponto que precisamos não só de heroísmo, tenacidade, coragem, talento e clarividência, mas também e, necessariamente, do contributo dos outros que só se pode expressar, através dos laços da camaradagem”…
“A camaradagem jamais produzirá frutos, quando for aceite por alguém como meio de servir-se a si próprio, isto, é tudo menos camaradagem. Esta consiste num mútuo trabalho de equipa, numa união completa e verdadeira, numa busca interminável pela verdade”…
Quando escrevi e declarei isto aos meus colegas, tinha 17 anos, foi esta a minha prática da camaradagem em todas as situações, e, ainda hoje, é assim que a vivo, bem como a do espírito de sacrifício. Dizia:
“ Tudo isto: avançar, persistir, lutar e vencer exige da parte dos que estas palavras de irrefragável sublimidade procuram dar significado, um autêntico espírito de sacrifício a todo o transe”.
Não alterei nunca em nada esta rota dos meus verdes anos, fui assim programado, e, assim, num mundo às avessas com esta visão, cumpriu-se o meu passado, e se vai cumprindo o meu devir. Honra-me este arco voltaico…..
O tempo urge, voltemos a Angola.
Deixo o Luso para fazer uma longa e surpreendente viagem até Mucaba. Vou passar por Nova Lisboa, Luanda e finalmente Mucaba, mas antes há umas coisas para contar, algumas surpreendentes, ou melhor para o Alferes foram, e hoje ainda continuam a ser, apesar de já ter ouvido falar de tanta e tanta coisa, e ter visto algumas, enfim coisas…
O POVO HERÓI E VÍTIMA DOS PROCESSO HISTÓRICOS
A viagem do Luso para Luanda foi de comboio, mas e, ainda, sobre o Luso, nas excursões dos plebeus que faço, para conhecer mais mundo, encontrei a padeira do Luso, mulher destemida e minha vizinha que fornecia, não sei quantos milhares de pães para os militares, e que com a descolonização perdeu tudo, menos a vontade de viver e vencer, e tem vencido.
Esta é uma heroína e vítima dos grandes processos históricos. Gente do povo, como o definia Eça de Queirós. Meus queridos irmãos! Quanto vos amo.
Fiz a viagem em primeira classe, num lindo comboio, diziam-me que tinha o estilo dos de sua Majestade com muitos espelhos e Madeiras envernizadas, o que, sabia também por ser madeirense, e os ingleses e as suecas andarem por lá.
Aquele comboio foi uma beleza e um grande prazer para o madeirense que sou, e que partilho com os ingleses o prazer do chá, parece que nós é que introduzimos o vicio na Inglaterra, depois perdemos, mas na Madeira nunca o abandonamos, ainda hoje as tias do Funchal, às 5 da tarde, estão no Golden Gate a tomar o seu chá.
( Se alguém não tem tomado o chá das 5, é o D. Alberto João. Tem um contencioso com a família Blandy, são democratas ingleses, portanto, percebe-se…)
A viagem foi agradável, mas apesar da guerra estar ganha, como diziam e ainda se diz, o comboio não circulava durante a noite por razões de segurança, e durante o dia a marcha fazia-se com escolta e de acordo com as regras militares dos movimentos, as directivas da escolta militar tinham de ser acatadas. A viagem foi óptima, mas os movimentos estavam reduzidos ao comboio.
Parei em Nova Lisboa, fiquei hospedado na messe de oficiais “extraordinariamente luxuosa, porém tem uma péssima alimentação. É o tal senão da bela”
Visitei a cidade de que gostei, e numa das boleias numa viatura militar, o condutor da Policia Militar (PM) “ lá me narrou a história de um ataque que os comandos e os fusos fizeram a um quartel da PM, onde, mataram o sentinela e atiraram uma granada para um jeep da PM. Balanço da escaramuça 2 mortos e 20 feridos”, (não sei se isto se passou, falava-se muito destas guerras).
Comentava, assim, no meu diário este incidente: “ como isto já vai, para fim de filme pouco mais falta que a aglutinação das letras, pois estas já pairam por todo o lado, e quando se juntarem será o fim”.
Contrariamente, ao que querem dizer alguns historiadores e outros oficiosos escritores nem todos andávamos a ver os comboios a passarem, embora tivéssemos de percorrer longas distâncias nessas relíquias.
Assisti ainda a uma instrução militar na Escola de Aplicação Militar e fiquei “ admirado, como alguns não se matavam ao fazerem determinados exercícios”.
Sobre o hotel que servia de Messe contavam-se umas histórias muito pouco santas, acerca dos casais que ali faziam cursos de cristandade, havia ligações internas entre quartos, mas talvez fossem histórias dos hereges que queriam o mal da Santa Igreja.
Viajei de Nova Lisboa para Luanda numa viatura de transportes de pessoal, ouvi novas histórias de gente que se matou e feriu outros e “ admirei as extensas plantações de ananases, autênticos oceanos, e de igual modo imaginei a riqueza dali derivada”.
MADEIRENSES, ADJACENTES, MAS PRESENTES
Encontrei em Quibala, mais um meu colega do Liceu, o Caldeira, um tipo que gramava. Nestes encontros fui sempre muito feliz, aliás, era conhecido por muita malta do liceu, e dava-me bem com a maioria, mas a alguns tive de dar uns murros.
Não foi preciso irmos a tribunal, um até disse que se vingaria, quando tivesse a minha altura, mas como ele já tinha a minha idade 15/16 anos não levei muito a sério a ameaça, e durante muitos anos lhe perguntei, quando a ia cobrar, mas ele manteve-se sempre mais baixo, enfim coisas, quase mistérios da natureza…
OS NÁUFRAGOS DESTAS GUERRAS
Novamente em Luanda, e, de novo, volto para os Adidos, onde, vou contactar com os verdadeiros náufragos desta guerra de que ninguém fala, mas eles existiam, não serviam para a tropa, eram maus militares cheios de penas e processos, mas por causa destes não podiam sair daquele teatro de operações, e como estavam revoltados tinham sempre mais um processo à espreita, o que ia somando anos e anos na guerra.
Eram verdadeiros destroços, onde, a revolta e o cacimbo, talvez o PTSD, misturavam-se fazendo de alguns destes homens personagens trágicas, mas simpáticas, lá para Mucaba e Damba encontrei alguns ( Meu Deus!), lá chegaremos.
Na messe de Oficiais de Luanda encontro o meu novo Comandante de Batalhão que me pareceu uma pessoa simpática e queria-me levar para a Damba de avião, mas como tinha bagagem essa hipótese era mais complicada, e, assim, logo apareceu, por ali, um capitão do QEO, o capitão Baracho, meu conhecido da AM e conhecido de todos os artilheiros de então, porque o seu grande cartão de visita era ser o único, segundo ele, que, em Portugal, e quiçá no mundo, tinha um conhecimento específico de uma velharia da Artilharia, o obus de montanha 7.5 que era do tempo das mulas de campanha.
O nosso capitão apesar de desagradabilíssimo para comigo era mais velho que o raio do obus, no fundo era um homem piedoso que amava muito a tropa e, nomeadamente, os alferes da AM, mas para ele, alferes, devia marchar em movimento terrestre, e, se apanhasse umas emboscadas pelo caminho, melhor. Mal sabia o grande cabo-de-guerra que eu preferia as agruras da guerra às viagens naqueles seguros, mas barulhentos aviões: Nort Atlas
Vou em transporte terrestre, e comigo viaja um furriel de alimentação. Fala comigo dos seus sonhos de como comprando vinho na tropa e vendendo a mil ou 2 mil por cento mais caro, se poderia fazer um jeitoso pé-de-meia.
Para azar do nosso furriel, ele iria para a minha companhia e, assim, fiquei a saber mais um truque, mas como ia comandar aquela companhia, o Furriel ficou desarmado, e creio que não enriqueceu, pelo menos durante o tempo que o comandei, porque bebeu vinho, mas não lhe foi vendido nenhum para revender.
Também falarei mais para diante do maldito vinho de palma, e, por isso, também daria os olhos da cara para beber um bom Borba, oferecendo as deliciosos garrafas de whisky que recebia por escala, na escala de comandante de companhia ou dos alferes. Os whisky eram diferentes Monks e Old Par (?) para capitão, os demais para alferes, não sei, se a escala chegava aos sargentos.
Ligava e ligo muito pouco a esta bebida, usava-a para tratar constipações, o mesmo fazia com a poncha da Madeira, tomada num bar frente à Igreja de S. Pedro, no Funchal, com a cerejinha cristalizada, mas nunca tratei nenhuma constipação com qualquer desses néctares. Talvez fosse preciso tomar umas litradas e, isso, nunca foi meu hábito, mesmo que a título excepcional, como compete a um confrade de um confraria de vinhos ( bons vinhos e baratos da Verbo Postal. Não é publicidade é uma informação amiga)
A viagem passou-se, como tudo na vida, e chego a Mucaba, onde, vou contactar com a morte e as grandes contradições do Homem.
Andrade da silva 10 Junho de 09
PS: Dia de PORTUGAL que PORTUGAL seja próspero, justo e sempre de TODOS OS PORTUGUESES dos de cá e dos da DIÁSPORA.
ABRAÇO-VOS.
2 comentários:
E cá vamos nós, em viagem, por essa Angola fora (ou dentro) contigo e as tuas recordações. E, pelo menos eu, sempre à espera de mais!
Bjinhos
Isabel
Também sigo o trilho com curiosidade. Nem sempre dou é com ele na hora certa. Não é, no entanto, grave, pois que mais cedo ou mais tarde lá chego.Com que então resolveste cortar as pernas a um empreendedor. Francamente!Histórias desses empreendimentos ouvi-as eu vezes sem conta. No mais das vezes era inveja, mas como não há fumo sem fogo...
Um abraço
luisladeira
Enviar um comentário