sábado, 9 de março de 2013

Poema da malta das Naus- António Gedeão

  



Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
Pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
Do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.

António Gedeão

In Teatro do Mundo, 1958

3 comentários:

Marília Gonçalves disse...

que se me livre a desalmada coisa com que escrevo links, de cantar os mares
esses Mares que Camões cantou!

que fiquem os poetastros ao borralho, donde a vergonha os deveria impedir de sair e a mim me refiro, por generosidade crítica, de bom amigo.
Marília Gonçalves

andrade da silva disse...

Belo poema que falo destes mares que foram e são um Desígnio nacional que urgentemente deve ser redescoberto.
asilva

Marília Gonçalves disse...

Ainda nos restam as profundezas abissais... que aquáticos seres se escondem na transparência obscura dos grandes fundos, onde nem a cor se revela...
abraço Capitão

Marília Gonçalves