quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

O Pensamento Medieval


TEXTO DE:  José António Bragança

Por detrás desse pensamento estava a crença de que o mundo era organizado divinamente. "Todos os seres do mundo são para nós como um livro, um espelho."Mas, com o tempo,essa fé seria abalada por uma extraordinária revolução cultural. Uma revolução na forma de pensarmos, de analisarmos o mundo físico. E, em nossa experiência, de outros continentes e culturas. A soma do conhecimento europeu e a fé cristã na qual ele se baseava, a forma de compreendermos o mundo, de como ele foi feito e passou a existir, estavam prestes a ser transformados.

O mundo entre os séculos IX e XV. Supostamente um período de superstição e ignorância. Onde as ideias eram sufocadas pela influência opressiva da religião. O cenário intelectual da Idade Média é pouco familiar, até estranho. De debates acalorados sobre pontos obscuros da teologia. Mas por trás de toda essa estranheza está um mundo de pesquisa intensa. Havia estudo, ciência, exploração intelectual e lógica sofisticada.

O mundo vivenciado pelo homem medieval era bem diferente do nosso. Fatos classificados como "sobrenaturais"aparecem com frequência nos relatos medievais.
Os registros medievais são repletos de visões de seres estranhos.

Segundo o filósofo Alain de Lille, "todos os seres do mundo  são como um livro, um quadro,um espelho, para nós."Mas esta visão da Terra como um livro sagrado começava a desvanecer através das mudanças que ocorriam no mundo medieval. O crescimento das cidades por toda a Europa. O surgimento de guerras. Os novos horizontes abertos pelo comércio. A crescente complexidade do governo e das leis. A burocracia exigida para gerir um estado medieval ficava mais sofisticada.

De onde viriam os juristas e administradores? Uma nova classe de homem, educada de forma diferente, era necessária. O conhecimento do estudo bíblico não era mais suficiente. Tutores começaram a se reunir em Oxford em meados do século XII. Ofereciam o ensino do Direito e outras disciplinas seculares em troca de dinheiro.

Foi uma pequena revolução. Podia-se seguir uma carreira de conhecimento sem ser monge ou padre. Jovens começaram a estudar, não para aproximarem-se de Deus, mas para melhorarem as suas chances na vida.

Homens como Pedro Abelardo, da Universidade de Paris, que se via como um guerreiro da verdade. "Prefiro as armas da lógica aos outros ensinamentos filosóficos e, de posse delas, escolho os choques das discussões aos troféus das guerras."

Sua abordagem crítica e analítica exemplifica o novo estilo intelectual surgido nos séculos XII e XIII.

Como ele escreveu: "É duvidando que se chega à investigação, e investigando que se chega à verdade."

Esse anseio por um tipo diferente de conhecimento iria ameaçar o monopólio monástico do ensino. A conturbação no resto do mundo acelerou essa mudança intelectual.

A Europa cristã estava na ofensiva. Seus cavaleiros conquistando terras ao redor do Mediterrâneo.

Nos séculos XI e XII, os cristãos espanhóis avançaram para o sul, tomando território muçulmano.

Em 1085, conquistaram a grande cidade de Toledo. Esta cidade fortificada fora o centro cultural das artes e ciências islâmicas. Foi um grande prémio para os exércitos cristãos.
Dentro de suas muralhas havia maravilhosas bibliotecas. Elas continham antigos textos gregos traduzidos para o árabe, incluindo obras científicas do grande filósofo Aristóteles, que até então era desconhecido no Ocidente.

As notícias de tais descobertas se espalharam pela Europa, chegando aos ouvidos dos clérigos britânicos. Por volta de 1170, um padre de Norfolk, Daniel de Morley, ouviu histórias sobre os manuscritos descobertos nas bibliotecas da Espanha. Frustrado pelo mundo intelectual limitado que via à sua volta, ele se preparou para a longa viagem ao sul da Europa. Daniel estava impaciente com o conhecimento tradicional que parecia dedicado a anotações detalhistas dos textos de direito romano.

O que o animava era o estudo avançado da matemática, geometria e astronomia.
"Os temas científicos eram festejados em Toledo. Dirigi-me para lá para aprender com os mais sábios filósofos do mundo." Em Toledo, ele encontrou o que procurava.

Os estudiosos cristãos nunca tiveram acesso a tanta informação nova. Homens como Daniel de Morley ajudaram a iniciar uma revolução intelectual. Na bagagem que Daniel trouxe da Espanha havia obras científicas de autores não cristãos como o grande cientista muçulmano, Abu Ma'shar,e por autores pré-cristãos como Aristóteles. Como o próprio Daniel disse,"ele retornava à Inglaterra com uma valiosa carga de livros."O trajecto de Toledo a Norfolk foi apenas a última parte de uma viagem intelectual extraordinária.

Ideias que viajaram ao longo dos séculos e através dos continentes.A Metafísica aristotélica.A Física aristotélica.O livro de Aristóteles sobre os animais.

Estes textos fizeram uma jornada incrível antes de ficarem disponíveis para os estudiosos da Europa medieval. Escritos originalmente no século IV a.C., na Grécia Antiga,eles se disseminaram pelo mundo helénico.

Então, séculos depois com a ascensão do Islão a expansão do império árabe,eles se tornaram conhecidos dos estudiosos muçulmanos que os traduziram para o árabe. Depois, espalharam-se pelo mundo islâmico, incluindo a Espanha.

E ali, no século XII, em uma sociedade multicultural e idiomática, estudiosos vindos da Inglaterra, Paris, Itália,em busca de traduzi-los para o latim, a língua universal da educação na Europa Ocidental.

E então, ao menos, estes textos, após 1500 anos, disseminaram-se aos centros intelectuais do Ocidente. Eles causariam uma revolução. Até então, as bases da filosofia medieval eram alicerçadas na Bíblia e em milhares de anos de ensinamento cristão.Deus criou o mundo em 7 dias e controlava todas as coisas nele.

Os filósofos gregos partiram-de premissas bem diferentes.As ideias dos pensadores clássicos gregos, como Aristóteles, escritas 4 séculos antes de Cristo, não levaram em conta a noção do Deus cristão.

Eles discutiam a psicologia humana sem referência ao Cristianismo e, claro, inexistia a revelação bíblica,ou criação em 7 dias.Ao invés disso, sustentavam que o universo sempre existiu e existiria.

As obras de Aristóteles ,junto com outros pensadores gregos e árabes, apresentavam algo totalmente novo no Ocidente cristão.

Uma análise racional sistemática do universo baseada em princípios não cristãos.Uma visão de mundo baseada apenas na natureza e na razão.

A reacção  mais tarde das autoridades da Igreja foi previsível."Os livros de Aristóteles sobre filosofia natural e os comentários sobre eles,não devem ser lidos em Paris, em público ou em particular, sob pena de excomunhão."

Era ainda pior. Se há leis naturais que regem o universo, isso implica que Deus é seu prisioneiro.Para alguns, esse pensamento era pura heresia.A crença religiosa parecia estar em rota de colisão com as teorias racionais-sobre a natureza do mundo.

Seria preciso um notável frade dominicano para reconciliar o aparentemente inconciliável.
Tomás de Aquino veio de uma família aristocrática da Itália.Ele era um rapaz estudioso e sua família parecia ter ambições específicas para ele.

Pensaram que seria muito bom se ele se tornasse abade do próximo e rico mosteiro de Monte Cassino. Mas Tomás tinha outros planos.

Ele foi atraído pela recém-fundada Ordem Dominicana, que prometia pobreza, pregação e ensino.Sua família ficou indignada com essa atitude rebelde.Tentaram de tudo para demovê-lo de tal decisão.Eles até o prenderam e mandaram jovens sedutoras para visitá-lo.Mas ele perseverou e partiu como dominicano para Paris, o centro da vida intelectual da Europa Ocidental.

Ali, Aquino se deparou com as ideias de Aristóteles. Ele notou que, ou a Igreja acomodava Aristóteles, ou seria oprimida por ele .A razão humana, sustentava Aquino, provinha de Deus. A revelação cristã também derivava de Deus.Se a razão humana fosse usada correctamente, não poderia contradizer o que Deus revelou na Bíblia.

O universo sempre existiu ,ou ele teve um princípio?
Aquino afirmou que isso não podia ser provado ou contestado somente com a razão.Aristóteles tinha chegado o mais longe possível com ela.Somente a revelação divina poderia nos fornecer a verdade.

Em sua imensa obra, a Suma Teológica, Aquino abordou todos os argumentos concebíveis entre as duas formas de pensar. Aquino realizou um estudo hercúleo
.
A experiência foi tão intensa,que exigiu muito da mente e do corpo."Comparada à grande glória de Deus, minha obra é nada."Ele morreu, deixando a Suma inacabada.Mas suas ideias sobreviveram.

O uso da razão, baseado em Aristóteles, para fortalecer o pensamento cristão ,ficou conhecido como Escolástica.Nenhuma pergunta era difícil ou obscura.Esse período ficou tão célebre e notório, devido à intensa investigação teológica.

Dizem que os pensadores medievais lidaram com a intrigante questão:"Quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete?"

Este não é um exemplo do verdadeiro pensamento medieval, mas um pastiche vitoriano dele. Mas há um pouco de verdade nisso.Tomás de Aquino realmente especulou se anjos, que não possuíam corpo,na acepção comum, poderiam ocupar mais de um lugar ao mesmo tempo, ou se muitos deles poderiam ocupar o mesmo lugar.


O equivalente medieval ao tipo de indagação que hoje fazemos na física quântica.

3 comentários:

andrade da silva disse...

Gostei bastante do texto de J. António Bragança.
Ele contraria um pouco a ideia de que a Idade Média foi a época das Trevas.
Acontece que a História do mundo e de Portugal ainda está por fazer, porque, no meu ponto de vista, aquela que nos transmitiram até agora, é muito parcial, porque é a mera visão de uma minoria de senhores que comandaram o mundo.
Confio que, nos próximos tempos, uma outra História será feita e divulgada - a História com a verdade dos factos, aquela que foi feita pelos povos, apoiados por indivíduos de cultura e de espírito livre...

Parabéns pelo Blog! Faz falta, neste tempo de profundas mudanças, espaços como este, que convidem ao debate são, para uma cidadania livre e responsável.

Obrigada.
Bjinhos
Emília Gil

andrade da silva disse...



de Almeida Moura:

Caríssimo

Um Excelente texto. Obrigado pela partilha.

Um Abraço.

Almeida Moura

andrade da silva disse...


António Várzea comentou:

Interessante digressão pela cultura. Gostei. Abraços.

Várzea