terça-feira, 18 de janeiro de 2011



POEMA DO AUTOCARRO


Quantos biliões de homens! Quantos gritos
de pânico terror!
Quantos ventres aflitos!
Quantos milhões de litros
do movediço amor!
Quantos!
Quantas revoluções na cósmica viagem!
Quantos deuses erguidos! Quantos ídolos de barro!
Quantos!
até eu estar aqui nesta paragem
à espera do autocarro.
E aqui estou, realmente.
Aqui estou encharcado em sangue de inocente,
no sangue dos homens que matei,
no sangue dos impérios que fiz e que desfiz,
no sangue do que sei e que não sei,
no sangue do que quis e que não quis.
Sangue.
Sangue.
Sangue.
Sangue.
Amanhã, talvez nesta paragem de autocarro,
numa hora qualquer, H ou F ou G,
uns homens hão-de vir cheios de medo e sede
e me hão-de fuzilar aqui contra a parede,
e eu nem sequer perguntarei porquê.
Mas...
Não há mas.
Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.
Mas eu só faço o bem, eu só desejo o bem,
o bem universal,
sem distinguir ninguém.
Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.
Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro
e sem lhes perguntar porque maltratam.
Eu sei porque é que morro.
Eles é que não sabem porque matam.
Eles são pedras roladas no caos,
são ecos longínquos num búzio de sons.
Os homens nascem maus.
Nós é que havemos de fazê-los bons.
Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro,
um rosto onde possa descansar os olhos olhando,
um rosto como um gesto suspenso
que me estivesse esperando.
Mas o rosto não existe. Existem caras,
caras triunfantes de vícios,
soberbamente ignaras
com desvergonhas dissimuladas nos interstícios.
O rosto não existe.
Procura-o.
Não existe.
Procura-o.
Procura-o como a garganta do emparedado
procura o ar;
como os dedos do afogado
buscam a tábua para se agarrar.
Não existe.
Vês aquele par sentado além ao fundo?
Vês?
Alheio a tudo quanto vai pelo mundo,
simboliza o amor.
Podia o céu ruir e a terra abrir-se,
uma chuva de lodo e sangue arrasar tudo
que eles continuariam a sorrir-se.
Não crês no amor?
Não ouves?
Não crês no amor?
Cala-te, estupor.
Tenho vergonha de existir.
Vergonha de aqui estar simplesmente pensando,
colaborando
sem resistir.
Disso, e do resto.
Vergonha de sorrir para quem detesto,
de responder pois é
quando não é.
Vergonha de me ofenderem,
vergonha de me explorarem,
vergonha de me enganarem,
de me comprarem,
de me venderem.
Homens que nunca vi anseiam por resolver o meu problema concreto.
Oferecem-me automóveis, frigoríficos, aparelhos de televisão.
É só estender a mão
e aceitar o prospecto.
A vida é bela. Eu é que devia ser banido,
expulso da sociedade para que a não prejudique.
Hã?
Ah! Desculpe. Estava distraído.
Um de quinze tostões. Campo de Ourique.
 
António Gedeão, Máquina de Fogo, 1961

1 comentário:

Marília Gonçalves disse...

A Todos

Quero agradecer a todos,os meus fraternos agradecimentos, pelo material que enviam para o 25 de Abril para todo o sempre
e de nem tudo é publicado é que me aparecem redundâncias, como vêem o caso é reatado, mas uma única vez
porque voltar a dizer precisamente a mesma coisa, por outras palavras, faz perder tempo a quem lê e é preciso e mesmo urgente avançar
Agradeço também o PCP,que me envia todos os !Jornais de Campanha de Francisco Lopes, de que nunca tinha ouvido falar, mas que me merece todo o respeito, porque se tem Confiança do PCP é porque a merece! Publico portante no blogue acima citado, o meu apoio à sua Candidatura às Presidenciais.
Sou Companheira de Caminho do PCP. porque sei a sua honestidade e sei que está como sempre esteve e estará ao lado de quem trabalha e ama seu Paîs e o Povo a que pertence

Convosco Sempre

a morada do blogue é a seguinte
http://nossaspoesiaslibertarias.blogspot.com/

Marília Gonçalves